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COMUNIDADES DE FALA E CONTEXTOS DE USO SOCIAL DA LÍNGUA III

COMUNIDADES DE FALA E CONTEXTOS DE USO SOCIAL DA LÍNGUA
Parte III

Aquiles Santos Pinheiro
Mestrando do Programa de Pós-Graduação
em Antropologia Social da UFAM.



 
CONCEITO DE CAMPO DE BOURDIEU

Do ponto de vista, da teoria da prática bourdiesiana e para fins de alcance dos objetivos do meu projeto de pesquisa, acredito que a observação da “fala pública” – nos fóruns de discussão, nas assembléias das organizações indígenas, de políticos na câmara municipal, nos discursos de líderes de movimentos sociais e associação de bairros, entre outros – pode ser bastante elucidativa à resolução destas questões.

Tal como é definido na teoria da prática e seguindo um viés mais sociolinguístico, um campo pode ser conceituado como uma forma de organização social que apresenta dois aspectos centrais: (a) uma configuração de papéis sociais, de posição dos agentes e de estruturas às quais estas posições se ajustam; (b) o processo histórico no interior do qual estas posições são efetivamente assumidas, ocupadas pelos agentes (individuais ou coletivos). Um campo deve ser tomado ainda como um espaço estruturado de posições. Entretanto não é uma estrutura fixa, e sim uma organização dinâmica.

No interior do campo, as posições são definidas por oposição, tais como: professor ≠ aluno, autor ≠ agente literário ≠ revisor, ou juiz ≠ júri ≠ defensor em um procedimento legal. Se as posições em um campo estão relacionadas entre si por oposição, os agentes que as ocupam relacionam-se através de disputas e competição. Descrever um fenômeno social como um campo significa, portanto, prestar atenção em algumas de suas características: o espaço de posições, o processo histórico de sua ocupação, os valores em jogo, as trajetórias das carreiras dos agentes e o habitus assumido pelo engajamento no campo.

Segundo Bourdieu (1997), todo e qualquer campo é um espaço de possibilidades estratégicas no qual os atores possuem trajetórias em potencial e cursos de ação. Os valores que circulam em qualquer campo formam a base da competição entre agentes. Essa circulação de valores inclui elementos como prestígio, reconhecimento e autoridade, mas também riqueza material e capital (simbólico).

Relativamente a um campo, qualquer agente possui uma trajetória ou uma carreira que consiste nas posições que ele ocupou e como elas foram assumidas, como foram abandonadas etc. Assim de uma perspectiva da prática, a produção da fala e do discurso são formas de ocupar posições em campos sociais, de forma que os falantes passam a ter trajetórias em cujo percurso eles perseguem diversos valores e, ao fazerem isto, os falantes são constituídos pelo campo.

Dito de outra forma, os falantes são constituídos pelo campo, na medida em que, numa perspectiva da ação, da prática, produzem fala (certos tipos de fala) e discursos como forma de ocupar posições (de poder) nos campos sociais. É preciso ainda considerar os valores (prestígio, reconhecimento e autoridade, mas também riqueza material e capital). Comparado a um termo como contexto, campo é tanto mais específico quanto mais consequente, ou seja, o campo é um elemento interno do contexto e tem uma função formativa, ou seja, é um elemento de formação que modela o indivíduo por meio do habitus.

Os elementos já citados dão origem a características especificadas por Bourdieu (1985 p. 20-21): (a) uma disputa linguística em que determinados fins são perseguidos mediante o uso de determinados recursos discursivos segundo normas estabelecidas; (b) um conjunto de crenças e assunções que preparam a disputa, e (c) os interesses específicos em jogo (o que pode ser perdido, ou ganho, como, e por quem).

Considerando a “comunidade de fala” do ponto de vista do conceito de campo de Bourdieu – relativizado pelo enfoque sociolinguístico – pode-se afirmar que uma comunidade de fala é constituída de campos, onde os agentes (sujeitos falantes) são constituídos e assumem papeis e posições de poder na medida em que adquirem o domínio dos valores circulantes (formas de falar) dentro de um processo histórico particular (sincrônico).

Existem inúmeros campos em qualquer sociedade, de modo que esse fato levanta a questão de como os campos se relacionam uns com os outros. Uma relação importante é a similaridade de organização, chama por Bourdieu de homologia. Há homologias, por exemplo, entre o campo literário e artístico, nos quais a avaliação e o consumo de gêneros são diferenciados, mas sob formas que se assemelham.

Os análogos linguísticos do conceito de campo são prontamente evidentes: campo semântico, qualquer conjunto paradigmático de termos em oposição, qualquer sistema de gêneros literários. Por exemplo, um tipo de fundamental à prática linguística é o campo dêitico, isto é, o contexto de enunciação socialmente definido em que a língua é usada para inúmeros objetivos, incluindo a referência e a descrição, a realização de atos de fala e interação verbal ordinária. Segundo Hanks (2008), as posições no campo dêitico incluem minimamente os quadros de participação dos falantes, destinatário e objeto e seus diversos pares múltiplos semelhantes (Goffman, 1981; Hymes, 1972); o ambiente espacial e temporal; e os parâmetros indexicais no interior dos quais os participantes têm acesso uns aos outros e a situação ao seu redor. No curso da fala, os interactantes assumem posições e as desocupam, agem no interior e por meio delas. Incorporados a um campo dêitico estão os cenários, definidos por sua relevância interativa e as situações, definidas pela mutua perceptibilidade das partes.

Assim sendo, dado que a prática linguística acontece praticamente em toda a esfera da vida social, o campo dêitico está, por sua vez, incorporado a um ou mais campos sociais: o interactante na prática verbal fala como um proponente de uma posição no debate político, como chefe ou trabalhador, como pregador, como jurisconsulto, como parente, no campo doméstico (HANKS, 2008).


O CONCEITO DE HABITUS

Um dos conceitos bourdiesianos mais amplamente citados é seu conceito de habitus. O habitus diz respeito à reprodução, na medida em que ele explica as regularidades imanentes à prática. O habitus explica a regularidade tendo como parâmetro a incorporação do agente ao mundo social e o fato de os atores serem socialmente constituídos por orientação e formas de relação relativamente estáveis. A estabilidade do habitus, o social fica impresso no individual, não apenas nos usos mentais, mas, sobretudo, nos usos corporais.

O habitus foi concebido para explicar a reprodução isenta de regras. Segue-se que, em uma teoria da prática aplicada à linguagem, as regularidades de uso não são explicadas por regras, códigos ou convenções, mas por disposições e esquemas incorporados, os quais não são seguidos ou obedecidos, mas atualizados no discurso. O habitus diz Bourdieu, emerge especificamente na interação entre indivíduos e o campo, não tem uma existência independente, isolada do campo (BOURDIEU, 1993, p. 349).

Em termos linguísticos, o habitus está relacionado à definição social do falante, mental e fisicamente, a seus modos rotineiros de falar, à sua gestualidade e ações comunicativas corporificadas e às perspectivas inculcadas pelas práticas referenciais cotidianas de uma dada língua. O habitus corresponde, portanto, à formação social dos sujeitos falantes, o que inclui a disposição para determinados tipos de uso linguístico, para avaliá-los segundo valores socialmente internalizados e para incorporar a expressão ao gesto, à postura e à produção da fala.

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