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COMUNIDADES DE FALA E CONTEXTOS DE USO SOCIAL DA LÍNGUA II

Para lembrar: para ler a  Parte I, vá na coluna a direita e pesquise nas postagens anteiores!


COMUNIDADES DE FALA E CONTEXTOS DE USO SOCIAL DA LÍNGUA
PARTE II

Aquiles Santos Pinheiro
Mestrando do Programa de Pós-Graduação
em Antropologia Social da UFAM.


AS VÁRIAS CONCEPÇÕES DE COMUNIDADE

No início da seção anterior, afirmo – com base em Monteiro, (2008) –, que o primeiro grande obstáculo que os pesquisadores nas áreas de Sociolinguística e Antropologia Linguística têm que enfrentar é a imprecisão conceitual reinante nas diversas definições de comunidade. Nesta seção, justifico essa afirmação, apresentando algumas das várias definições de comunidade apresentadas por autores de referência na área da Linguística, onde constataremos que tais definições são ora amplas demais ora muito pouco precisas, dificultando ainda mais a separação dos conceitos e sua aplicação prática.

Iniciamos com Labov (1972), para quem o termo comunidade não se aplica a um grupo de falantes que utilizam (todos) as mesmas formas (variedades linguísticas) e sim, a um grupo que segue as mesmas normas relativas ao uso da língua. Em seguida, temos a definição de Fishman (1972), onde se afirma que o importante mesmo é o uso em comum tanto da variedade linguística como das normas empregadas no seu uso, como é afirmado também por Amusategi (1990): “uma comunidade é um grupo cujos membros têm pelo menos em comum uma variedade e compartilham acordos, regras ou normas para seu emprego correto”. Note-se que, nessas definições, o critério predominante é o da interação ou das regras compartilhadas para o uso de uma dada língua (apud MONTEIRO, 2008, p. 40).

Segundo Monteiro (2008), estas definições não apresentam grandes discrepâncias, mas tampouco resolvem o problema da imprecisão conceitual. Ao contrário, levantam outras questões, tais como: se o fator determinante ou preponderante para se definir comunidade é um conjunto de atitudes idênticas, até que ponto se pode dizer que todos os falantes de português, seja do Brasil ou de qualquer outro País, pertencem à mesma comunidade? Parece claro que a divergência entre os linguístas decorre da indefinição de um critério único. Por essa razão, a solução encontrada foi distinguir o conceito de comunidade de fala do de comunidade linguística.

Nesse sentido, Romaine (1994) apud Monteiro (2008, p. 41), afirma que uma comunidade de fala “não é necessariamente coextensiva com uma comunidade linguística”. Este autor conceitua a primeira como “um grupo de pessoas que não compartilham necessariamente a mesma língua, mas compartilham de normas e regras para o uso dela”. Para tornar ainda mais clara a distinção entre comunidade de fala e comunidade linguística, Romaine acrescenta: “as fronteiras entre as comunidades de fala são essencialmente mais de caráter social do que linguístico”.

Esta última afirmação de Romaine suscita uma questão – que no meu entender – representa um grande desafio para a Sociolinguística de Labov e, para a qual, acredito que a Etnolinguística – ou se preferirem, a Antropologia Linguística – pode ser bastante elucidativa. Trata-se, portanto, de se fazer dois movimentos: o primeiro se orienta no sentido de se localizar as fronteiras entre fatos sociológicos e fatos linguísticos; o segundo consiste em tentar compreender como estes se relacionam. Ao que parece, esse duplo movimento poderá ajudar na definição do conceito de comunidade, na medida em que orienta o foco para os limites sociolinguísticos, onde se evidenciam com mais força a diversidade funcional e social da língua, ou seja, é aí que precisamente se entrechocam língua e cultura, língua e identidade étnica, língua e ideologias, língua e territorialidade, língua-padrão e variedades linguísticas entre outros aspectos.

Como Romaine, Morales (1993) apud Monteiro (2008, p. 41), também mostra que comunidade linguística e comunidade de fala nem sempre se confundem e cita como exemplo, Madrid e Caracas que participam da mesma comunidade linguística, porém distinguem-se como comunidades de fala pelo fato de não compartilharem de uma série de atitudes linguísticas com relação a algumas variedades e, consequentemente, diferem nas regras de uso. Este exemplo mostra que pessoas de uma mesma comunidade linguística, mas vivendo em países ou regiões diferentes, distinguem-se quanto às regras e atitudes face ao uso do idioma. Ou seja, nem sempre o domínio de atuação de uma língua ou dialeto coincide com os limites territoriais de uma nação ou região.

Ainda no que respeita à demarcação dos limites físicos da comunidade, Marcos (1993) assinala que “a comunidade linguística pressupõe a existência de uma demarcação física que em princípio, iria desde pequenos núcleos territoriais até países de dimensões continentais. E há também a possibilidade de que, em sentido amplo, seus membros não sejam única e exclusivamente monolíngues”.

A idéia de que não existe um tamanho preciso ou ideal para uma comunidade, havendo, pois uma relatividade muito grande sob esse aspecto é prevista por Labov (1989), no exemplo que apresenta sobre os falantes do Inglês da Philadelphia, sobre os quais se pode dizer que são membros de uma comunidade mais ampla dos falantes do Inglês. Mas, também é correto afirmar o contrário, que a Philadelphia é composta de várias subcomunidades menores de falantes do Inglês. Definição igualmente interessante é a que nos é apresentada no dicionário de Dubois et al. (1993), onde se lê:

O conceito de comunidade implica que sejam reunidas certas condições específicas de comunicação, preenchidas num dado momento por todos os membros de um grupo e exclusivamente por eles. Mas, o grupo pode ser de qualquer natureza: estável ou instável, permanente ou efêmero, de base geográfica ou social. Pode ser uma nação inteira ou simplesmente os membros de uma profissão que usam uma determinada gíria ou vocabulário especializado (MONTEIRO, 2008, p. 41).

Outra solução proposta para driblar a imprecisão (terminológica e conceitual), foi a de se introduzir um novo conceito, o de comunidade de comunicação, conforme a seguinte passagem de Neumann et al., citada em Dittmar (1997):

Se as relações comunicativas representam um aspecto das relações sociais, segue-se que os respectivos indivíduos em comunicação se tornam constantemente parceiros (reais ou potenciais) de comunicação, na medida em que formam uma unidade social que, por sua vez, deve sua existência essencialmente à comunicação linguística. Se analisarmos, então, os diferentes grupos sociais, classes e níveis, sob a ótica de suas relações comunicativas, poderemos interpretá-los como um sistema de diferentes comunidades de fala que se sobrepõem umas às outras. As comunidades de fala, portanto, correspondem às unidades dos diversos níveis estruturais da sociedade; elas apenas realçam o seu aspecto comunicativo (MONTEIRO, 2008, p. 42).

Percebe-se, portanto, que a questão não fica de todo esclarecida. E até se pode argumentar que, em última análise, o conceito de comunidade de comunicação, face ao de comunidade de fala, termina sendo de difícil aplicação prática, pois como o próprio Dittmar (1997), se indaga reflexivamente: “[...] se, pensando no caso do Alemão, desde que este é falado na Alemanha, Suíça e Áustria, haveria três comunidades de comunicação e apenas uma comunidade de fala?”.

Para além do que já foi discutido até agora, apresentamos mais algumas definições, que como as demais, pecam pela imprecisão, p. ex: “Comunidade de fala são todas as pessoas que usam uma dada língua ou dialeto” (LYONS, 1970). “Cada língua define uma comunidade de fala: o conjunto completo de pessoas que se comunicam entre si, seja direta ou indiretamente, por meio de uma linguagem comum” (HOKETT, 1958). “Uma comunidade de fala é um grupo de pessoas que interagem por meio da fala” (BLOOMFIELD, 1933). “É um agrupamento humano caracterizado por frequente e regular interação, efetivada através de um mesmo sistema de signos verbais, e separado de agrupamentos similares por significantes diferenças no uso da linguagem” (GUMPERZ, 1971).

Finalizando, observa-se que as definições apresentadas são insatisfatórias, ora por serem amplas demais ora por serem imprecisas; o que dificulta ainda mais a separação dos conceitos. Dittmar (1997) apud Monteiro (2008, p. 41) qualifica-as de “ingênuas” e diz que o critério da interação é inconsistente e que “nem a frequência de interações nem as diferenças observáveis no uso da língua fornecem um fundamento adequado para uma boa definição”. O mesmo autor agrupa essas definições em função de três critérios básicos. O primeiro, conforme se comentou acima, é o da interação ou das regras compartilhadas para o uso de uma dada língua. O segundo não leva em conta obrigatoriamente que a língua de uma comunidade seja a mesma, mas exige a consideração de critérios adicionais que resultam do caráter pragmático da comunicação. Ou como sugere Fishman: “a densidade da comunicação e/ou a integração simbólica com respeito à competência comunicativa, independente do número de línguas ou variedades empregadas”. Finalmente, o terceiro critério utilizado é o da “identidade social”. Além disso, as imprecisões prejudicam a própria compreensão das teorias linguísticas. O que se constata é que um mesmo termo passa a circular com diferentes alcances e acepções, dependendo dos autores que os empregam (cf. MONTEIRO, 2008).

Comentários

  1. Muito bom, me ajudou bastante em minha iniciação científica. Valeu!

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  2. Oi, Stela, tudo bom? Ficou muito feliz por ter contribuído com a sua formação. Este é o nosso objetivo aqui no blog, fazer circular informações e conhecimento.Um grande e carinhoso abraço!

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