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Guatá Ypy: curso de Tupi Antigo / 01

Olá, pessoal do Xe mba’e!

Estou fazendo estágio docente na UFAM na disciplina Introdução ao Estudo das Línguas Indígenas. E foi justamente em ter como orientador um lingüista, Dr. Prof. Frantomé B. Pacheco, que me aproximei mais da lingüística e tomei gosto pelo estudo das línguas indígenas. Como antropólogo, tive a oportunidade de compreender, entre os yanomami, povo que convivo desde 2007, aquilo que realmente é importante, e que também afirmava Geertz (1978), que no trabalho de campo com uma cultura que não é a minha, é a sua especificidade complexa e sua circunstancialidade que é fundamental. E se vocês me permitem, posso até completar ainda com as palavras de Geertz: A abordagem semiótica da cultura consiste em auxiliar o etnográfico a ganhar acesso ao mundo conceptual no qual vivem os seus sujeitos para poderem conversar com eles (1978). Traduzindo, gerar diálogo. Acredito que através da aprendizagem de uma língua é possível, a exemplo de Malinowski, alcançar o que dissera Geertz, acessar o mundo conceptual do outro. (mas não é a única via, só para esclarecer, rsrsrs)

É por esta dinâmica dialógica que me motiva a iniciar aqui no Xe Mba’e aulas básicas sobre a língua Tupi Antigo e posteriormente sobre a Língua Yanomami. Alguém então poderia indagar: Mboe’esara porque estudar Tupi antigo se ninguém não a fala mais? Bem, é verdade que não se fala o tupi de 1500 (na verdade não existia uma língua TUPI, mas sim diversos dialetos: tupinambá, tupiniquim, tupinaé, tabajara, entre outros), mas se fala dialetos dele. Encontramos o nheengatú (ou Língua Geral) no Estado do Amazonas que é falado por milhares de pessoas (e que é uma das três línguas oficiais do município de São Gabriel da Cachoeira), ou os Kamaiurá no Parque do Xingu. O fato é que ninguém tem tempo (nem disposição e nem dinheiro sobrando) de aprender algum dialeto tupi, morando no interior do Nordeste, por exemplo, em Itanhaem-PE, e viajar para São Gabriel - AM para praticar a língua! Mas, por outro lado, quem aprende o tupi, só tem a ganhar, sabe porque? Porque aprender o tupi (no nosso caso uma versão do tupinambá) não é um projeto ambicioso como o do Policarpo Quaresma, mas pelo fato de em nosso querido idioma portuguesseleiro (português brasileiro) o tupi é uma língua extremamente inserida e presente no nosso cotidiano. Encontraremos vocábulo Tupi nas nossas toponímias, em nossas comidas, em nossas ações e até em nossos xingamentos! Quem nunca ouviu esta frase Deixa de ser velha coroca!? Então, você sabia que a palavra coroca deriva de kuruk = resmungar, em tupi? Por essa breve introdução percebemos como vai ser bacana aprender um pouco de tupi antigo.
Meu intuito é de ensinar a língua tupinambá de forma prática e divertida, não usaremos, portanto, termos técnicos ou que dificultem a aprendizagem, pode ser?
Em outra oportunidade contarei como surgiu o meu contato com essa língua, por falar nisso, daremos o nome de nosso cursinho de Guatá-ypy (primeiros passos) que era o nome de uma cartilha que estava preparando para publicar.



Guatá-ypy
(Primeiros Passos)
Lição I

Preparados? Vamos para a nossa primeira aula!
Começaremos pela pronúncia. Não sabemos ao certo como era pronunciada, mas reconstituindo a língua tupinambá através dos dialetos, a exemplo do Latim, poderemos aproximar bastante da pronúncia original. Lembrando que isso não é uma preocupação fundamental, já que não é nosso intuito a prática da fala, mas da leitura. Se se tiveres um colega para praticar, ótimo! Mas, não vão andar de segredinhos por ai, só porque ninguém entende tupi, hein!
Então, o tupi antigo possui 5 vogais.
A = normal como em português. / E = aberto como em pé. / I = normal como em português dia. / O = aberto como em avó, pó. / U = como em português tabu. /.
Y = esse som não existe em português. É uma vogal média, isto é, intermediaria entre o ‘u’ e o ‘i’. É difícil de ser pronunciada e exige um pouco de prática. O bizu é dizer ‘u’ e abrir os lábios como se fosse dizer ‘i’ continuando a pronunciar o som do ‘u’. ou seja, é dizer ‘u’ com a boca no ‘i’. Engraçado, né?
Lembrando, todas elas podem ser nasalizadas: (~) em cima de todas as vogais.

Vamos passar para as consoantes?
Veremos que o tupi usa muito o (’), por exemplo, no meu nome Mbo’esara. Esse sinal ai (‘) é o que os lingüistas chamam de consoante oclusiva glotal! Parece palavrão, né?! Ele não existe em português! Ôxente, de novo? Calma! Na verdade esse sinal ai é uma interrupção da corrente de ar. É muito freqüente nas línguas indígenas aqui no Brasil, mas também encontramos essa oclusiva em outras línguas como no árabe.
O ‘b’ a gente pronuncia como se fosse “v”, como em castelhano (você fala Castelhano? Non, non hablas niente em castelhano? Que pena!). Eu disse que como se fosse o “v”, os lábios não se tocam como em B. Os lábios apenas se friccionam. Adivinhem como os lingüistas chamam esse B? de... de... “b” fricativo!!!!! Que coisa.
O “î” esse ai (o ‘i’ com circunflexo ou com chapeuzinho, como lembra meu sobrinho) a gente vai pronunciar as vezes como o “ dJ” (como em DJ, aqueles homens que botam CD pra tocar nas festas, só pra lembrar, sabe), as vezes como “nh” entre vogais nasais. E quem quiser pode pronunciar como ‘i’ mesmo. Mas ele será uma consoante, ta?
O ‘nh’ é como nh mesmo. Como em ganhar, banhar, etc.
O ‘k’ como em ‘q’ ou ‘c’ diante de ‘a’, ‘o’ e ‘u’.
O ‘m’ é como em português mesmo. Agora o ‘mb’ você deverá começar pronunciando o M e terminar em B. este ‘b’ não é fricativo é oclusivo, ele fecha mesmo. Os lábios se tocam normalmente para pronunciá-lo.
O ‘n’ como em português mesmo. O ‘nd’ começa com nasal e termina com oral. O ‘ng’ é como no inglês ‘sing’.
0 ‘p’, o ‘t’ são como em português.
O ‘s’ nunca soa como Z, mesmo entre vogais. Sempre tem som de ‘ss’.
O ‘û’ é uma semivogal e funciona como a palavra portuguesa água.
O ‘x’ como em português mesmo, ou como ‘ch’.
Ai, que negócio chato, eu já estava pra morrer de agoniado!!!!! Mas, faz parte do processo de aprendizagem da língua, pra quem quer falar e não apenas ler, é claro. É chato, mas, é preciso!
Vamos passar pra outra coisa agora?

LIÇÃO II
No tupi existem dois tipos de conjugações. Uma conjugação com verbos e outra com os nomes. Vamos aprender logo os mais fáceis (somos espertos, ôxe!). Como vocês verão, é muito fácil. Basta junta os pronomes Xe(eu); nde (tu); a’e (ele, ela); i (ele, ela somente diante de adjetivos); îandé, ore (nós) e peẽ (vocês) a palavra. Vejamos o exemplo de uma conjugação de nome.
Xe marãgatu (eu sou bom)
Ndé marãgatu (tu és bom)
i marãgatu (ele, ou ela, é bom)
îandé marãgatu (nós somos bons)
oré marãgatu (nós somos bons)
peẽ marãgatu (vocês são bons)
i marãgatu (eles são bons)

Não sei se vocês perceberam, mas em tupi antigo não existe o verbo ESTAR ou SER. Portanto, não existe verbo de ligação. Literalmente é como se a gente falasse: EU BOM, EU FOME. Vamos repetir só pra fixar melhor.

Xe=eu / nde=tu / i=ele (mas só com adjetivo, beleza!),
îandé=nós (esse îandé, esse ‘nós’, inclui a pessoa a quem dirigimos a palavra, tipo “nós todos”)
oré=nós (esse aqui é um ‘nós’ exclusivo, ele exclui a pessoa a quem dirigimos a palavra. Vamos imaginar uma cena: se um tupinambá tivesse palestrando contra a idéia de usar bombas atômicas na floresta pra fazer testes nucleares ele diria “nós não queremos que façam os testes nucleares aqui!”. O ‘nós’ tupinambá que ele usaria seria o oré e não o îandé (nem todos são tupinambá na reunião), outro exemplo, (se eu tivesse com meus colegas e fossemos tomar banho no rio eu diria a você que, por acaso, estive fazendo um trabalho da faculdade (ta vendo fica assistindo novela esquece das obrigações!): nós vamos tomar banho! [esse ‘nós’ não te incluiria, já que você estava trabalhando e não ia participar do banho, portanto, usaríamos o oré]. Sacou a manha da língua?

Vamos treinar até a próxima aula?

Vamos construir frases simples com as palavras:
Porang (bonito)
Ro’y (frio)
Ky’a (sujo)
Ambyasy (fome)
kyrá (gordo)
poxy (feio)
Junto com os pronomes ou com as palavras da lista abaixo:
Pó (mão)
Kururu (sapo)
Mandubi (amendoim)
Pituna (noite)
Itá (pedra)
Pitanga (criança)
Pratiquem, ta! Aos poucos nosso vocabulário vai aumentando, mas vocês têm que praticarem mesmo, senão tudo vai para a memória-de-curto-prazo! Alguém lembra o que significa kuruk? Rsrssr.

Até a próxima postagem!


Referência
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.
TIBIRIÇA, Luiz Caldas. Dicionário Tupi-Português, 1984.

Comentários

  1. gostei da aula, qualquer duvida voce responde aqui?

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  2. Claro, estamos aqui para isso! sempre que atualizar o Xe mba'e tirarei suas dúvidas!
    um abraço!

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  3. Estou adorando estudar o idioma, eu já estudo japonês, achava japonês mais fácil princialmente por não ter certas regras, mas vejo que o tupi é bem mais fácil, continue postando por favor!!

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