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HEKURAMOU: Xamanismo Yanomami

HEKURAMOU: O XAMANISMO YANOMAMI

Paulo Roberto de Sousa, antrop.

Acredito que um dos exercícios mais praticado pelo antropólogo é o da reminiscência. O antropólogo é submetido, durante seu campo, a uma cascata de informação que, se ele não toma consciência dos fenômenos antropológicos neste primeiro momento, com certeza o fará posteriormente. Ora, ao realizar este exercício de reminiscências o antropólogo faz mais do que simplesmente recordar fatos, mas, no ato de suscitar reflexões acerca das mesmas reminiscências, elabora o pensamento antropológico. É exatamente a partir desse exercício de reminiscência contínuo, que surgiu a idéia de escrever este minúsculo artigo (tão minúsculo que não cabe nem mesmo receber o título de artigo). De todos os meus momentos de contato com a cultura yanomami da região do Marauiá o período mais marcante foi durante o ano de 2007, onde pude morar por tempo bastante largo, totalizando quase um ano sem interrupção. Durante esta estada por lá aprendi a língua, cantos, danças, recebi apelido, mata isitonipi, depois de certo tempo, presenciei rituais, cerimônias e aprendi muito dos costumes do dia-a-dia. Foi um tempo de profunda experiência e um verdadeiro mergulho no mundo yanomami. Mas não é sobre o trabalho de campo que quero abordar neste artigo, mas o xamanismo yanomami.
Hekuramou, assim é chamado o xamanismo yanomami. Sua prática me marcou por diversos fatores, e entre eles está a noção de pessoa que está intrinsecamente ligado a prática xamânica. Entender como funciona o hekuramou e as atividades dos hekura pë ‘espíritos’, xapori pë ‘espirito’, entre outros entes, é um empreendimento que perpassa a noção de corpo, de substância e de pessoa, como também de referências cosmológicas e noção yanomami de doença.
Ora, a reflexão antropológica dessas categorias vem sendo estudadas e debatidas desde a algum tempo, pois são categorias cuja produtividade para a análise das sociedades indígenas estava sendo prefiguradas, por exemplo, na obra de Lévi-Strauss em meados da década de 1960, como nos trabalhos de Viveiros de Castros (1986; 1996), McCallum (1996), Augé (1978), Michel-Jones (1978), Mauss (1974), Goldman (1999), entre muitos outros que apontaram para este novo e importante horizonte na antropologia. Como não temos espaço suficiente e nem tempo para uma boa explanação sobre as teorias antropológicas a cerca da noção de corpo, de pessoa, etc, faremos (mui pesadamente) apenas uma explanação sobre o xamanismo yanomami sem entrar muito em teorias, o que seria muito interessante. Se o meu objetivo, por um lado, é o de expor, mesmo que brevemente, o hekuramou e daí suscitar interesse dos diversos leitores e dos meus colegas de academia, sendo antropólogo ou não, para a temática xamânica e a noção de corpo nos grupos indígenas, por outro a própria prática de expor já é uma teoria em si, como poderemos perceber no decorrer da leitura.
Como já mencionamos o termo yanomami hekuramou refere-se ao que a antropologia denomina de xamanismo, de forma mais particular nos estudos realizados no Brasil o termo mais próximo é o de pajelança (veja a postagem anterior Um olhar sobre xamanismo). Claro que essa definição acarreta uma séria discussão que por hora evitaremos adentrar (o que também seria interessante pois cada grupo indígena possui sua própria dinâmica e complexidade de organizar essa realidade xamânica). Então, o hekuramou é uma prática xamânica yanomami que tem diversas funções. Ela consiste não apenas na cura de doenças, mas também é fonte de conhecimento, pois boa parte dos cantos de hekuramou , conhecimento sobre a fauna e a flora, são obtidos durante o seu exercício. A este propósito, tive a oportunidade de assistir a várias sessões de hekuramou e de ouvir vários seus cantos específicos. Segundo vários yanomami com quem convivi diziam que o canto hekuramou é um dialogo/conversa onde o hekura neste mundo escuta e responde ao canto do espírito. Certo dia eu estava visitando uma residência e ao lado alguns homens estavam fazendo hekuramou. Escutei um canto com uma melodia bastante interessante e perguntei a um jovem yanomami o que o canto estava dizendo. E ele me respondeu que não entendia o que cantava o hekura. No princípio cheguei a pensar que era uma forma de esconder ao ‘outro’, no caso eu, já que não era yanomami, os segredos da prática do hekuramou. Interessante ressaltar que o canto de hekuramou se distingue da cantoria comum amoamou e essa distinção consiste, provavelmente, no uso de uma língua yanomami arcaica (ouvi de alguns yanomami mais experientes que tal termo cantado não era mais utilizado, estava em desuso, como acontece a muitas palavras em português). Fato este que um jovem não iniciado por um hekura, possuía dificuldades, não raramente, de entender o que o hekura cantava. A única relação existente a ambos, como eu viria a descobrir posteriormente, é que os cantos possuíam direitos privados, algo do tipo copyright.
Assim, o termo hekuramou significa agir enquanto espírito daí que o xamã ou pajé, que age enquanto espírito recebe o nome do mesmo espírito a qual está em contato, ou seja, hekura. Entre os Yanomami orientais (aqueles que habitam a região de Roraima), os xamãs recebem o nome de xapori que é outro tipo de espírito. Concluímos então, que não existe precisamente um termo correspondente a xamã, ou pajé, em yanomami.
Podemos esquematizar o Hekuramou em fases que, de antemão, já dão um panorama da dinâmica e da complexidade que é o hekuramou, vejamos:
1.Inalação do epena ‘substância enteógena ’. O epena é soprado através do mokohiro ‘tubo próprio para soprar o epena’; (yanomamini epena a kõai pario ‘o yanomami toma/inala primeiramente a substância)
2.Transe inicial (a roo tëhë, yanomamini hekura pë wã hirii ‘enquanto está acocorado o yanomami escuta a voz do espírito);
3.Identificação do espírito auxiliar através do praiai e do canto específico (quando não está associado ao processo de cura de doença o hekuramou permanece nesta fase).
4.Acesso a lógica existente por trás dos fenômenos observáveis pelas pessoas comuns; (wawëtowë, aquilo que é claro e evidente, isto é, percebe-se a febre pelo aumento da temperatura corporal da pessoa, mas não se sabe a causa que a efetivou)
5.Identificação dos rastros (mãyõ) dos agentes etiológicos (origem das afecções a serem tratadas) - (hekurani yai pë nosi pou ‘o yanomami hekura persegue/o rastro do espírito maléfico).
6.A negociação (no mihiai). O hekura tenta negociar com o agente e através dessa troca/negociação cessar as agressões.

Quando o hekuramou está associado a cura de doença entra então a complexa noção de corpo. Antes, porém, vale ressaltar que a doença na concepção yanomami consiste em um tipo de agressão. Ao ser agredido gera-se a doença. Essa agressão advém de inimigos próximos ou relativamente próximos. Há vários tipos de agressões, mas há quatro tipos básicos, a saber, feitiçaria de rastro, feitiçaria guerreira, xamanismo agressivo (os espíritos podem ser tanto auxiliares, como agressores) e caça ao duplo animal da pessoa. Como, infelizmente, não podemos discutir sobre todos, nos atearemos ao último caso: caça ao duplo animal, sendo que as agressões se dão, quase que necessariamente ou ao rixi ou ao no uhutipi da pessoa.
As agressões, anteriormente citadas, possuem conseqüências físicas, mas ela se dá, não no físico, e sim, nos elementos imateriais que compõe o corpo. Para o yanomami o corpo do ser humano é formado de cinco elementos fundamentais (veja a imagem ao lado), dos quais 1 é material e os 4 restantes, são imateriais. São eles: pei si kë ‘invólucro corporal, pele’ (única elemento material), no uhutipi (imagem essencial ao agredir está imagem o individuo sofre em seu corpo, este ainda se subdivide em noreme, princípio vital e wixia espécie de sopro ou vento, responsável pela animação do corpo. Notar que wixia é diferente de watori ‘vento e horaxiprai ‘soprar’), rixi (duplo animal), puhi e pore (dois elementos antagônicos que constituem a estabilidade psíquico-social do yanomami).
Gostaria de comentar brevemente sobre o rixi. Ele consiste em uma espécie de animal que partilha o mesmo espírito com um yanomami, eles co-existem e os fatos ligados a eles se co-relacionam. Os yanomami afirmam que quando um yanomami se alimente o seu rixi também se alimenta, quando este é acometido de desejo sexual, também o seu rixi o é, ambos adoecem juntos e morrem juntos, mas vivem em lugares longínquos um do outro, como também não há restrição alimentar, isto é, um yanomami, a qual tem como rixi um certo tipo de macaco, não está impedido de comer da mesma espécie de seu rixi(veja a direita).
Retornemos então, a agressão cometida a um desses elementos ocasiona o desequilíbrio biológico, psíquico e social do individuo. Ao contrário da concepção ocidental da doença, que é cartesiana, isto é, onde se isola o princípio patológico da doença e se aplica os processos medicinais in lócus. (exemplificando, se alguém foi acometido de febre, esse alguém passará por um diagnóstico geral, será encaminhado, se assim for preciso, a um especialista para aquele tipo de enfermidade que aplicará o medicamento, cuja ação se restringirá unicamente aquela enfermidade, em síntese, a doença nos parâmetros ocidentais tem uma perspectiva biológica. Daí que precisamos pular de consultório em consultório pra saber o que nos acomete). Na concepção yanomami, este procedimento minucioso também existe, mas acontece em outra ordem, possui, entre outras, uma perspectiva social, antes mesmo que biológica. As agressões basicamente acontecem, como já mencionamos, em relação ao no uhutipi ou ao rixi. E é a partir dessas considerações que as fases 5 e 6, mencionadas anteriormente, entram no processo de cura no hekuramou.
O processo de cura ligado ao hekuramou é dialógico. A doença possui um agente (no wãri, yai, xapori, entre outros) que agride o individuo e este cai enfermo, é com ele que é negociada a cura, quando o agente pára de agredir a doença cessa. O hekura utiliza-se do epena e em transe penetra na esfera onde acontece a agressão (os yanomami possuem uma concepção plural do mundo, isto é, existem vários mundos e em cada um deles existem pessoas que vivem, caçam, comem, mantêm relação sexual como no mundo habitado por ele). O hekuramou é uma negociação, e através dessa negociação é que o agente, causador da doença, deixa de agredir o no uhutipi ‘imagem essencial’, ou o afasta o caçador que caça o rixi ‘duplo animal’ do yanomami doente.
Infelizmente o espaço é pequeno e o tempo curto, mas espero ter mostrado um pouco da complexidade do hekuramou. Ainda há muito para se refletir e aprofundar nessa temática, não somente sobre o xamanismo yanomami, mas em todos os demais grupos indígenas.


Algumas referências que estão relacionada a esta temática.

AUGÉ, Marc. (1978), “Introdução” e “As Crenças na Feitiçaria” In Augé, Marc (Orgs). A Construção do Mundo, Lisboa: Edições 70.

GOLDMAN, Marcio (1999). “Uma Categoria do Pensamento Antropológico: a noção de pessoa” In Goldman, Marcio (Org.) Alguma Antropologia. Rio: Relume Dumará.

LEENHARDT, Maurice (1979) [1947]. Do Kamo. Person and Myth in the Melanesian World. Chicago and London: The University of Chicago Press.

LÉVI-BRUH, Lucien (1947) [1927] – El Alma Primitiva. Barcelona: Ediciones Península.

MAUSS, Marcel (1974) [1938]. “Uma categoria do espírito na noção de pessoa, a noção do eu” in Sociologia e Antropologia, vol. I, São Paulo: EPU/EDUSP.

MCCALLUM, Cecilia (1996) “Morte e Pessoa entre os Kaxinawá” In Mana, Estudos de Antropologia Social, Vol. 2, n° 2, outubro.

MICHEL-JONES, Françoise. (1978). “A Noção de Pessoa”. In Augé, Marc (Org.), id, ibidem.

VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo (1986). Araweté: Os Deuses Canibais. Rio: Zahar.

VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo (1996). “Os Pronomes Cosmológicos e o Perspectivismo Ameríndio” In Mana, Estudos de Antropologia Social, Vol. 2, n° 2, outubro.

VIVEIROS de Castro, Eduardo. 1979. "A fabricação do corpo na sociedade xinguana". Boletim do Museu Nacional n. 32.

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