ARQUEOLOGIA DAS NARRATIVAS
TREMEMBÉ II – A Princesa Encantada de Jericoacoara
Anaûé xe iru gûé!
Já começamos a partilhar em
posts anteriores as nossas narrativas. Na primeira narrativa contei as histórias de Îagûatïrïka Kaí awé (O Gato-do-Mato e o
Macaco)[1] e sobre O Mito do Mokororó e Cosmovisão
Tremembé: Resgatando Mitologia E Deuses Da Cultura Tremembé [2]. No post de
hoje vamos abordar mais uma narrativa as quais denomino de histórias de dormir, que de certa forma, plasma a nossa cosmovisão
(costumes que infelizmente tende a se acabar, ou não). Na infância aprendi sobre muitas
coisas a partir das narrativas de dormir, de lobisomem a iaras, de guajaras
(kaagûara) a espíritos/encosto(Awasaí), de heróis a encantados.
Na narrativa de hoje vou contar uma história que escutei dos meus avós lá em Jericoacoara, em tempo (não tão distante assim) que as histórias eram narradas sobre o manto da escuridão (não tinha eletricidade na época da minha meninice. A energia chegou a Jeri por volta de 1998 e antes disso, era eu e meus irmãos quem acendiam as lamparinas, velas e lampiões espalhados pela casa dos meus avós) e os tucum debaixo dos mata-fomes, tremiam mais do que vara verde diante das narrativas assustadoras e sussurradas dos velhos.
Pé de mata-fome, em frente a casa dos meus avós, em Jeri. Aqui atávamos redes e "tucum" para ouvir histórias a noite. |
Até alguns dias atrás,
pesquisando textos, me deparei com uma enxurrada de site e vídeos falando sobre
a Princesa Encantada de Jericoacoara, será?! Fique perplexo, pensei que as
historias da minha avó paterna eram “coisa dela”, narrativas criadas para a
gurizada, mas ai me dei conta do tamanho da extensão das narrativas, tendo em
vista que as histórias espalhadas pela web são todas resumidas, resolvi
partilhar, aqui no nosso blog, como eu a escutei da minha avó.
da esquerda pra direita em pé: meu irmão caçula, meu pai, no meio ao fundo, minha esposa e eu (de camisa preta), sentados meu avô (já falecido) e minha avó (excelentes narradores de histórias) |
A Princesa Encantada de Jericoacoara
Antigamente, existia um enorme
castelo no alto da serra que abeira o mar em Jericoacoara. Era um castelo muito
lindo, cheio de riquezas e com muitos adornos em ouro e prata. Suas torres eram
tão altas que rasgavam as nuvens baixas durante o tempo de inverno. Nesse castelo
morava o Rei com a sua filha[3], uma moça de uma beleza extraordinária. Sua mãe
havia falecida quando ela ainda era criança e o rei nunca mais se casou. A beleza
da princesa era tão grande que todos os moradores da redondeza, isto é, de Camocim,
Tatajuba, Jijoca, Preá, Guriu e interiores, bem como os europeus que vinham do
mar, todos visitavam a princesa e lhes levavam muitos presentes.
Certo dia chegou no castelo um
velho índio acompanhado do seu neto. O velho era um homem demais feio, orelhas
imensas, encurvado, magro com costelas expostas, olhos embranquecidos pela
velhice, cabelo ralo e suas coxas pareciam de grilo. Diferentemente do neto, um
jovem robusto, alto, com uma bela barba e de uma bela incrível.
O velho índio queria muito ver
a princesa e o neto o levou. Quando o velho índio viu a princesa se apaixonou
de primeira. A princesa se assustou com a feiura do velho, mas ficou encantada com o seu neto. Depois de conversar por um longo tempo o índio velho chamou em
público o rei para fazer um pedido. O rei percebeu que a filha se encantara com
o rapaz, neto do velho. E apreciava-lhe a possibilidade de ter netos lindos.
Para a surpresa do Rei, o
velho índio pediu a mão da princesa em casamento. Ele iria se casar e não o
neto. O Rei contestou e rejeitou veemente o pedido, achando um absurdo um velho
índio feio daquela natureza pedir a mão de sua linda filha.
Mas, o velho não desistiu e
começou a implicar com o rei a tal ponto que rei mandou aos seus que lhe
tirasse o velho do recinto do castelo. Agarrado pelo braço, o velho tentou
reagir, mas foi em vão. Fora do castelo, empurraram o velho índio que cambaleou
e caiu lá do alto, quicando terra abaixo, na ribanceira até lá embaixo, na
areia da praia. O neto tentou ajudar, mas não conseguiu. Para a surpresa de
todos quando o velho caiu na terra ele virou uma enorme pedra em forma de
gente. Todos ficaram perplexo e foram dizer ao rei.
O rei saiu do castelo e do alto viu a pedra e não acreditou que aquela pedra fosse, de fato o velho índio. Então, resolveu descer. Ninguém quis descer porque ficaram com medo do ocorrido. Descrente e certo de que não havia nada lá embaixo no pé do serrote, o rei desceu. Sua filha o acompanhou. Quando estavam os dois na praia depois de alguns minutos descendo o serrote, o rei se aproximou da pedra. E a analisou de pertinho. De repente o índio agarrou-lhes a canela, a pedra tinha sumido e o velho voltado a sua forma humana. O velho índio era um grande pajé. Jogou-lhe uma espécie de feitiço no rei que o deixou em estado de asfixia, desesperado e sem poder reagir ele acenou para a filha correr e caiu quase morto no chão.
A Princesa correu, mas foi alcançada pelo índio velho, que agora
parecia bem mais ágil do que aparentava a sua idade. E disse para a princesa
que ela seria sua mulher. A princesa gritou, dizendo que preferia a morte do
que casar com aquele velho feio. O índio velho ficou muito magoado, puxou das
costas um pedaço de tecido, como se fosse uma toalha e jogou em cima da
princesa, que estava caída no chão. Ela gritou desesperadamente e o índio velho
sumiu. Quando conseguiram descer do serrote, pois era muito alto e muito íngreme
a descida, correram para socorrer a princesa. O pano era curto, cobria-lhe da
altura do pescoço e seu tronco, deixando as pernas de fora. Quando um dos que
ali estavam puxou o pano, todos ficaram aterrorizados, a linda princesa era
agora uma imensa cobra, enrolada em si mesma, com exceção de sua cabeça humana e
as pernas. Sem braço e com os seios a mostra.
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Princesa encantada: Desenho que fiz a partir da narrativa da minha vó. |
A princesa agora encantada e
assustada se arrastou para a furna, uma gruta que fica embaixo do serrote de
Jericoacoara. Quando ela entrou o índio velho apareceu na gruta. E disse a
princesa.
- esse será o teu castigo e a
tua maldição que só será quebrada se uma alma for sacrificada e com o sangue
desse sacrifício, fizerem uma cruz no teu espinhaço (nas costas).
Ao falar isso, um portão
desceu das padras da gruta, trancando a princesa encantada no fundo da furna. Houve
um grande estrondo, as pessoas começaram a correr, pois o castelo começou a
afundar, uma nuvem gigantesca de poeira vermelha subiu e por cima dessa nuvem de
poeira era possível ver as torres sendo engolida devagarinho pelo serrote, até
que por fim, não restou nada, nem rei, nem princesa e nem castelo. Uma relva
tomou conta do serrote, cobrindo-o todinho. A princesa ficou presa, com suas riquezas e fortunas no
fundo da gruta, esperando até hoje, alguém que a livre da maldição.
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Entrada da gruta onde esta a princesa encantada/Jericoacoara |
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Vista do interior da gruta da princesa encantada/jericoacoara |
Eis a história.
Obs: o tema “princesa”, “rei”,
“cavaleiro” é muito corrente nas narrativas do povo Tremembé. Acredito, que
esse input de realeza nas narrativas, seja em decorrência do contato com os
europeus. Diferente de outros povos, nós do povo Tremembé, tínhamos uma certa
resistência as coroas europeias (Portugal, Holanda, França, etc), mas que
apesar disso o contato e as alianças (com muito custo) provavelmente influenciou
as nossas narrativas dando um toque de “glamour”, rsrsrsrs
1- https://xembae.blogspot.com/2019/10/arqueologia-das-narrativas-tremembe-i.html
2- http://xembae.blogspot.com/2019/06/o-mito-do-mokororo.html
3- As narrativas sobre a princesa mudam conforme o seu narrador, em algumas versos que vi na web, a princesa se chamava Carolina, mas minha vó não citava nome a princesa.
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