A diferença entre “não posso” e “não quero”.
Gostaria de partilhar aqui uma reflexão filosófica apoiada na linguagem que, em primeiro momento, parece uma bobagem, mas que pode revelar muito da dimensão inconsciente (se de médico e de louco todo mundo tem um pouco, de psicólogo então, nem se fala!) do ser humano na esfera da inter-relação com o outro: a diferença substancial entre o não posso e o não quero. Esta reflexão nasceu de uma curiosidade sobre o uso da linguagem durante as leituras de Habermas, Austin, Lyons e outros lingüistas e filósofos da linguagem.
A princípio, ambas as respostas para uma dada circunstância parece ecoar definitivamente como a não possibilidade da realização do fato em questão. Ora, se durante uma visita a um amigo, por exemplo, me convidasse para tomar uma xícara de café e eu respondesse “não posso, obrigado!” ou “não quero, obrigado!”, ambas as respostas, marcaria a negação do ato convidativo a ser realizado. Ou em outro contexto, se minha mãe convidasse alguém, meu irmão, por exemplo, para ir passear na praça da cidade (tendo em vista a possibilidade de se tomar um delicioso sorvete por lá) e ele respondesse “não posso” ou “não quero”, a negação do ato ecoaria novamente como no exemplo anterior. Nos dois exemplos se recusam ao convite feito, mas, será que ambas possui a mesma dimensão quando se trata de uma reflexão mais profunda da intenção da pessoa? Será que, de fato, o deferimento é um ato conscientemente consumado pelo locutor da negação? A negação é realmente uma negação?
Para estas questões levantaremos algumas hipóteses e veremos se de fato existe uma diferença substancial entre o não posso e o não quero. Como trabalhamos com intencionalidade, isto é, a intenção consciente do falante diante de um estímulo verbal-expressivo, como um convite, não poderemos medir o grau de intencionalidade ai posto, pois é praticamente impossível medir a real intenção de alguém em um dado contexto. Mas, poderemos, todavia, inferir algumas hipóteses dessa intenção baseada em estudos linguístico, filosófico e psicológico.
A primeira dessa hipótese remete ao que se denomina de Lapsus linguae. Isto é, uma resposta verbal realizada inconsciente pelo falante diante de um contexto de pressão, ou de relaxamento psico-social. Em síntese poderíamos dizer que Lapsos da língua são fenômenos linguísticos (e não somente linguístico) que ostentam uma fronteira entre o esperado e o inesperado, isto é, consideram-no como um desvio. A abordagem dos lapsos, como, por exemplo, pela literatura, revela uma concepção linguística que separa conhecimento (formais) e uso (informações) da língua. Desta forma admite-se que os lapsos fazem parte do sistema da língua no qual o sujeito se insere e pelo qual ele se constitui através de relações sócio-comunicacionais. Eles podem ser analisados como rupturas com a estabilidade de significação promovida pela subversão dos eixos metafórico (ou paradigmático) e metonímico (ou sintagmático), ao invés de desvios. É essa característica de ser algo mais que um desvio que trataremos neste pequeno texto. Ocorre que um lapso verbal pode ser analisado dentro de uma pretensão contrária ao contexto a que se realiza. No nosso primeiro exemplo, quando o convite é feito para se tomar um café, precisamos levar em consideração vários fatores externos que dialogam com o lapso dado na resposta “não posso”. Sendo assim, o não posso não é necessariamente um não posso, mas sim, um gostaria-de-poder-mas-dada-as-circunstacia-‘x’-não-me-é-permitido-no-momento simplesmente representado por um não posso. Essa resposta indesejável e seu objeto é desejadamente querido, mas algum, ou alguns fatores externos/internos não favorecem a sua realização. Digamos que o eu, do exemplo, gostaria muito de tomar aquele café saboroso da casa do amigo, mas fatores externos, como ter que chegar logo em casa, pois ela está lá abandonada, ou estar esperando uma visita e não seria interessante deixá-la esperando, ou ainda ser responsável pelo medicamento de algum doente, ou qualquer motivo esdrúxulo ou absurdo, entre outros. São fatores externos que o impossibilitam de uma demora, mesmo que por curto espaço de tempo, uma vez que o eu tem noção de que uma xícara de café sempre é acompanha de um bom bate-papo e não seria educado, esperado, que alguém tomasse o café em um só gole e saísse em seguida, deformando o ambiente comunicacional. Por outro lado, a resposta poderia estar condicionada por fatores internos. Por exemplo, o de não poder tomar café porque está tomando medicamento que não permite a ingestão de cafeína. Ou de acreditar que o café retarda o metabolismo (e olha que muita gente acha que tomar café pode ficar burro e mesmo retardar o crescimento), ou simplesmente de estar de dieta, pois como adora café extremamente doce, prefere não tomar e a resposta para o convite é: não posso! Ao cabo de tudo teremos na verdade um desejo, grande ou pequeno, mas potencialmente desejável, de poder tomar o café, contrariando a própria resposta dada.
No segundo exemplo, o convite para ir a praça, segue praticamente o mesmo princípio. Vários fatores entrariam em jogo para a formulação do não posso, que pode ser simplesmente recusado pelo fato da praça ser um lugar movimentado e ai encontrar um amigo do qual anda intrigado, ou de uma colega pela qual passou um vexame em alguma ocasião do dia anterior. Ou de no momento do convite ocorreria um jogo clássico no campeonato brasileiro. Ou pelo fato de não estar bem de saúde e ainda, o que é meio absurdo, estar apaixonado pela vendedora de sorvete, uma amiga, que embora desejosa de vê-la prefere não se auto-constranger.
A resposta do não posso passa pelo crivo do inconsciente e seu ato da fala é avaliado conforme as circunstância do contexto. De um lado temos fatores externos, estímulos do mundo (fatos), e por outro, internos, estímulos fisiológicos e ético-morais. Se, por exemplo, uma mulher, que é casada durante vários anos, cujo esposo ama profundamente, encontrasse com seu ator de novela preferido durante uma viagem de barco (o exemplo é bem plausível para a realidade manaura) e este lhe propuser uma noite de amor (para tornar o nosso texto aqui mais romântico) certamente, sua resposta seria não posso! Pois, apesar de ser seu ídolo e “amá-lo” desde a juventude, o seu compromisso com o esposo implica numa relação ético-moral, que perpassa uma rede de informação construída entre eles em comum acordo obrigando-a a se comportar desta ou daquela maneira, e que por sua vez, é ratificada pela sociedade, pois exige de seus sócios uma conduta moral formal, não alicerçada, necessariamente pela moral religiosa de que isso seria adultério. Embora a sua resposta fosse não posso, a carga intencional posto no ato de fala implica o objeto desejável mais do que a negação do mesmo.
Por fim, se de um lado o não posso, seria um desejo retraído pelas circunstâncias do contexto fisiológico-etico-moral, por outro o não quero é a completa consumação da negação do desejo. Esta última forma é ríspida e direta, chegando ao ponto de ser considerado uma ofensa numa relação inter-humano. O não quero possui um caráter axiomático, isto é, a verdade (o que podemos entendemos sobre verdade, uma vez que trabalhamos com intencionalidade?) pode ser resgatada do próprio ato de fala. Enquanto que o não posso é encarada dentro de uma lacuna regida pelo por quê. E por isto que responder não posso nem sempre é a última palavra da negação de um convite.
Daí que podemos dizer, ou melhor, dis-dizer, dos nossos populares, nem sempre a boca fala daquilo que o coração está repleto...
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