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O MITO DO MOKORORO


O MITO DO MOKORORO
Os mitos nas Histórias de dormir

Antigamente, há muito tempo mesmo, Ỹamandu Mirῖ andava vagando pelo litoral cearense. Ỹamandu Mirῖ achava lindo ver o infinito do mar, ver o horizonte onde o mar se tocava com o céu. Ỹamandu Mirῖ estava catando pequenas conchas para confeccionar um lindo Moîar (colar). De repente ele avistou um kurumῖ e perguntou:
- awápe ndé?
- ixé Gureri po’õ o kurumῖ respondeu e voltou a pergunta. –Ae ndépe?
- Ỹamandú Mirῖ.  Respondeu Ỹamandú muito orgulhoso - marãpe ndé ereỹemoỹang oikowo?
- ixé a ỹemoỹang umé.
- awápe nde sï serã? – perguntou Ỹamandú a Gureri.
- xé sï Mani po’õ. – respondeu o kurumῖ.
Ỹamandú Mirῖ gostava muito de Mani e queria muito um filho com ela, mas ela não queria Ỹamandú, ela gostava de um jovem Tremembé, um jovem guerreiro e um dos melhores caçadores de iperu (tubarão). Mas, Ỹamandú era um encantado, isto é, ele era um espirito de um antepassado. Apesar de ser muito belo, com belas pinturas corporais e um cabelo bem comprido e ondulado, Mani gostava mesmo era de Kaîu. Ỹamandú Mirῖ deixou Gureri na praia e subiu. Ỹamandú passou o resto do dia pensando em Mani. Nessa época os Tremembé dançava o tórem em torno da Ïwïrá (árvore), porque os encantados viviam nas sombras das árvores. Todos os encantados gostavam de ver os Tremembé em torno da Ïwïrá, gostavam de ver os Mbara’ka (maracá) dançando e se misturando com as vozes deles. Quando îasï estava bem alto no céu e o círculo apareceu a sua volta, os Tremembé dançaram o Torém durante toda a noite, até o sol romper o horizonte. Mas, Ỹamandú Mirῖ ficou de costa a noite toda. E Tupã perguntou a seu irmão.
- Ndé ere katu serã, xe tang gûé?
- aỹe! ixé a katu reté, xe tang gûé!
- ndé erekatuana werameῖ umé! – exclamou Tupã.
- ixé akatuana reté, xe tang gûé!
Como Ỹamandú Mirῖ não queria falar, Tupã o deixou em paz e desceu de novo para o litoral. Tupã perguntou a Ỹamandú
- ndé ereîur serã?
- aỹe, ixé asoykõ iré, xé tang gûé!
Ỹamandú desceu pelo îamakaru (cacto) de volta a terra, para o litoral. O îamakaru era bem alto e ficava em um dos serrotes que ficava a beira do mar. 
îamakaru (mandacaru) no cume da serra em Jericoacoara/CE
Quando estava descendo o îamakaru Ỹamandú olhou para o oceano e viu Kaîu pescando. Ele se apressou em descer e logo chegou as margens da praia gritou por alguma îara, mas não apareceu nenhuma. Ỹamadú ficou triste porque queria fazer mal a Kaîu. De repente uma cuspida de água veio ao rosto de Ỹamandú, era Ïpupiara. Ele sabia que Ỹamandú gostava de Mani e que ela não o queria. Ïpupiara queria fazer mal a Mani, mas não a Kaîu, porque Mani tinha dada o Mbara’ka de presente para os Tremembé, o mbara’ka era dele. Os Tremembé antes de Mani cantavam apenas ao som das suas próprias vozes, não tinha mbara’ka. Por isso, ïpupiara não gostava de Mani, tinha inveja dos Tremembé e de seus cantos, que ficaram ainda mais bonitos com o mbara’ka. Ỹamandú Mirῖ acenou e ïpupiara, entendendo o gesto, avançou pelas águas profundas e logo chegando perto de Kaîu, virou em uma lixa (sp. ginglymostoma cirratum). A lixa tentou abocanhar o braço de Kaîu, mas ele se livrou e nadou muito rápido para a beira. Os encantados não gostaram da atitude de Ïpupiara, ele, porém, falou que foi a mandado de Ỹamandú. Tupã foi atrás de Ỹamandú. Ele ouviu muitos gritos na praia. Tupã desceu então pelo îamakaru e avistou Ỹamandú que tava meio abirobado. Ỹamandú estava com uma lança enorme, toda enfeitada com penas de piririguá. Ele atirou a lança com força, mas a lança passou direto de Mani e ia alcançar Gureri. Kaîu pulou na frente da lança e os dois foram espetados. Kaîu abraçado com Gureri caíram mortos. Um estrondo enorme soou no céu. Tupã se enfurecera com Ỹamandu que sumiu logo em seguida. Mani sentia uma dor muito forte no peito. Tupã se aproximou e sentiu pena de sua sobrinha e disse:
- Xé itó gûe, ndé ereapirõ umé...
Tupã aumentou duas vezes o tamanho dele e levou os corpos de Kaîu e de Gureri para a trás da tapera de Mani. Pegou um pouco de barro e fez um kamotim, colocou os dois dentro e os enterrou. Mani se aproximou e chorou em riba do kamotim, dai saiu água do peito, era a água de Mani. Os Tremembé ficaram muito triste. Tupã mandou corta o îamakaru para que Ỹamandú Mirῖ não descesse mais por ele. No outro dia, acordaram Mani e chamaram-na para ver o que tinha acontecido. Era uma árvore nova com frutos de polpa carnuda e avermelhado. Mani chamou o fruto de Akaîu (caju). 

Mitã, o pequeno deus protetor das crianças, que também era um encantado, apareceu no meio dos casebres Tremembé e mandou que eles pegassem muitos akaîu, depois os espremessem. Eles obedeceram porque Mitã era um encantado. O suco, eles colocaram dentro de um coco sem água. Enterraram o coco e sete noites depois, durante o Torém, Mitã surgiu com o coco na mão e pediu que a roda do torém não fosse mais em torno da ïwïrá, os Tremembé obedeceram. Dois Tremembé que puxavam os cantos ficaram dentro do Torém, Mitã também ficou dentro, e deu para eles beberem aquela bebida. Era o Mokororo, a bebida sagrada do Torém, que lembrava Gureri e Kaîu, de ambos nasceram o Mokororo. Uma criança tremembé viu o mokororo e lembrou da água que saiu de Mani, por isso, chamaram o Mokororo também de água de mani. E até hoje nós, Tremembé, bebemos o mokororo porque é uma bebida sagrada e lembra os antigos antepassados.

Essa é uma das muitas histórias de dormir.

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