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TORÉM: A DANÇA RITUAL E O RITUAL DA DANÇA


TORÉM: A DANÇA RITUAL E O RITUAL DA DANÇA
Reflexão sobre a dança do Torém do Povo Tremenbé


É deveras importante ressaltar para os “outros” a nossa cultura como sendo aquilo que sustenta o nosso ser e o nosso devir. Pensar em traços culturais é pensar no modo de ser, no modo de viver e cada elemento não nos representa tão somente, mas, integra o nosso próprio ser. É como se não fosse possível separar o eu a “outra coisa”. E é nesta dinâmica que eu abro espaço aqui para falar do Torém.
O torém é parte integrante do ser Tremembé, por várias razões: ele é um elemento místico, é uma dança ritual, é música sagrada, é um material simbólico, é um agregador de elementos (maracá e o mocororó) e é agente socializador.
Torém


É difícil pensar no Torém apenas como uma simples dança, tipo folclórica ou regional. Não é apenas uma roda de pessoas cantando, ou um canto acompanhado da roda. O torém é a representação do nosso universo holístico. O próprio círculo que fazemos na dança representa o espaço infinito das possibilidades do ser e este circulo, símbolo do infinito e da perfeição, sempre trás uma parte integrante. O entoador no centro é o que nos liga ao infinito. Uma sincronia com duas realidades distintas que se mesclam. O entoador nunca está sozinho, porque o Tremembé nunca é uma pessoa só, somos. Toda vez que se forma um círculo para dançar o Torém se cria também um elo que une todos os Tremembé, em várias partes do nordeste. Todos estão de alguma forma ali presente, mesmo eu aqui no estado do Amazonas a milhares de quilômetros. Esta é dimensão mística do torem.
roda do torém

Ele é uma dança ritual que invoca uma fala ritual. Quando cantamos também dançamos. A dança em forma de círculo é plena e o movimento que realizamos representa o fluxo da vida. Quando dançamos também cantamos e o nosso canto é sagrado. Ao cantar, mesmo que iniciemos em português, evocamos a língua dos nossos antepassados, o Poromonguetá. Alguns estudiosos e pesquisadores acreditam que as letras do Torém sejam de origem tupi, na verdade são, porque tupi é o tronco de onde se originou a nossa língua. O poromonguetá foi umas das línguas gerais falada na costa, não aquela fala pelos padres jesuítas, nem pelas capitanias e nem pelos bandeirantes amazônidas, mas aquela fala e mesclada no maranhão. No processo de transição, quando deixamos de falar nossa língua materna, de um tronco desconhecido, provavelmente de uma língua isolada, para o português. Neste interstício, entre as duas línguas, o poromonguetá se instalou e marcou o nosso Torém. Cantamos na nossa língua materna, não cantamos em tupi, não cantamos em nenhuma língua Jê. Cantamos em poromonguetá. Quando pronunciamos jandê (em poromonguetá é îandé) nos remete diretamente a nossa língua. Em tupi îandé (se pronuncia iandé, com som de i mesmo) em poromonguetá esse î tem som de dj (djandê) que depois vai virar o som de j puro e isso ocorre em todas as palavras da letra do torém onde se pronuncia j. Assim, o nosso Torém é sagrado porque cantamos em nossa língua sagrada.
Ele é simbólico porque reúne todos e todas em um espaço de chão comum. É daí que recarregamos a nossa identidade e o nosso viver, ele revitaliza o nosso povo pela sua simbologia. Mas, também, ele é agregador de elemento, pois sempre vai estar acompanhado do maracá e do mocororó. Maracá é um instrumento sagrado, sua terminologia correta seria mbara’ka, que quer dizer soar. Ele não é somente um instrumento idiofônico, ele é uma ponte que liga o som da voz, o seu próprio som e o som do ambiente para apresentar uma realidade que é, ao mesmo tempo, terrena e espiritual (dimensão dos encantados), e incorpora o “outro”, pois qualquer pessoa pode ser convidada a compor a roda do Torém. O maracá é a voz dos guerreiros Tremembé ecoando através do tempo, ele canta junto e conosco quando iniciamos o torém. Outro elemento agregado ao Torém é o mocororó. Bebida fermentada de caju (akaîu) que alimenta e sustenta o Torém. O torém nasceu com o mocororó e o mocororó nasceu com o torém. Erimbaé îandé îaúkã Mokororó! (bebemos mocororó desde antigamente!). Quando tomamos mocororó em casa, bebemos só mocororó, mas quando o bebemos no Torém, resgatamos a memória de todos os Tremembé que já viveram na terra, por isso ele tem força e por isso nós o tomamos.
E, por fim, o Torém é um agente socializador, ele introduz a criança na cosmovisão Tremembé, ele faz a manutenção da cultura e da identidade do Tremembé, quer seja jovem ou idoso, além disso, ele também incorpora o “outro”, ou seja, o não-tremembé, como um elemento de acolhida. 
os não-tremembé participando do Torém

O torém é tudo isso o que eu falei e descrevi aqui e muito mais. Nós, que somos Tremembé, acreditamos no Torém porque ele nos renova. O torém é uma atividade muito complexa o que a primeira vista não parece, não é só uma dança e nem é só um canto, é a nossa representação da existência e de resistência do Povo Tremembé.



links de video do torem




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