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ANAXÍMENES: O GIGANTE DO AR

ANAXÍMENES: O GIGANTE DO AR

ANAUE, XE IRU GUÉ.

Em uma postagem anterior falei um pouco sobre Tales de Mileto e a sua visão monista sobre a água como arché. Hoje venho falar um pouco sobre outro filósofo grego, tão importante quanto Tales, estou me referindo a Anaxímenes de Mileto.

Anaxímenes
Anaxímenes, como todo bom filósofo grego, também era um grande astrônomo. Discípulo de Anaximandro e ouvinte de Tales, Anaxímenes ousou algumas teorias intrigante para época, umas errôneas, como por exemplo, é dele a ideia da terra planaSe por um lado, a terra não era plana, Anaxímenes, só com o poder da observação deixou-nos o legado de que a lua não emitia luz própria e que os eclipses (que causava muito temor aos seus contemporâneos) era na verdade, para o filósofo, uma obstrução da luz por um corpo celeste. Boa Anaxímenes!

Teoria da Terra Plana

Mas, o grande legado de Anaxímenes mesmo, foi a sua teoria filosófica sobre a arché. Só para lembrar, tanto Tales, como Anaximandro, ambos milésios, inovavam um novo campo de vista e cunhavam uma perspectiva monista, ou seja, propostas que sintetizavam o entendimento partindo de um único elemento, um elemento primordial, concreto e lógico. A arché é o princípio de tudo o que existe. Assim, os pré-socráticos rompiam com a visão cosmogônica (ou seja, a visão multifacetada do mito como proposta originária) e desenvolvia a perspectiva cosmológica, baseada na lógica e no exercício da razão.  
Assim, Anaxímenes concordava até certa altura com o pensamento dos seus mestres, onde que para Tales a arché seria a água e para Anaximandro o Apeiron, o indeterminado. Entretanto, Anaxímenes divergia dos seus predecessores, pois acreditava que de fato a origem de tudo deve ser algo físico, corroborando com a visão materialista monista, e concordando com, até certo ponto, com Tales, de um lado e concordando com Anaximandro, de outro, que provavelmente a massa geradora das coisas, essa sim, era indeterminada, mas não o Apeiron anaximándrico, não o “indeterminado em si”. A arché, para Anaxímenes, não poderia orbitar uma espécie de suprarealidade ou uma metarealidade, não poderia se situar fora de uma realidade papável e empírica, ao mesmo tempo deveria ser sutil, necessário e obrigatório.
Para compor sua teoria, com base na observação do mundo, Anaxímenes, propôs, como principio arquetípica do universo o αέρας (AR). Este seria o elemento gerador de tudo. Anaxímenes percebeu que este elemento era mais versátil e mais sutil do que a água de TALES. Sua característica “invisível” era mais dramática, com aspectos infinito e ilimitado, se aproximando do Apeiron sem perder a sua qualidade material, sua empiricidade em frente a sua qualidade inobservável.

Para concluir seu pensamento e ligar o Ar a arché Anaxímenes observou que este elemento podia passar por transformações significativas, como torna-se visível pela condensação e tornar-se éter pela rarefação. Esta possibilidade de mutação do seu estado físico possibilitaria compor outros elementos, do mais sólido (mais condensado) como as rochas, ao menos sólido (mais rarefeitos) como o fogo. Além desse processo Anaxímenes também observou aspectos biológicos, como a necessidade de ar para a manutenção da vida e aspectos físicos, como o movimento dos ventos, geradora de força motriz.
É obvio que, a esta altura, percebemos que Anaxímenes, como os demais conterrâneos, conhecia bem as transições do estado da matéria. Os pares contrários já era um conhecimento circulante na época de Anaxímenes, mas foi ele quem associou esses contrários a um único elemento, convergindo a um mesmo ponto de origem.
Com Tales e a sua arché baseada na água, a sua máxima era  “tudo é água” e as coisas estão “cheias de deuses”, Tales afirmava a dimensão “humana”, ou melhor, “material” dos deuses. Como em Tales, Anaxímenes também coloca o ar, este elemento primordial, na base de origem de tudo o que existe. Entre essas coisas ele identifica o ar com a alma, ou seja, é o ar que anima o corpo humano e, consequentemente, anima também todo o mundo. A partir desse ponto as reflexões começam (para o laico em filosofia) a trilhar um caminho que beira (tendenciosamente) um teor religioso: A concepção de alma.

A concepção de alma na perspectiva filosófica tem um caráter sempre de reflexão, com base na concepção socrática do homem: o que somos? Se fossemos levar com consideração a trajetória dos debates sobre a “alma” e onde ela se localizaria no corpo poderemos mapear a partir de Aristóteles, cuja sede da alma seria o coração, para Erasístrato, a mesma estaria nas membranas, em Herófilo, se localizaria nas grandes cavidades do cérebro, em Serveto no aqueduto de Sylvius, em Aurâncio no quarto ventrículo, em Descartes, filósofo da iluminura, na glândula pineal, já em Whaton e Schellhammer  no começo da medula espinhal, com contribuições e do avanço da medicina, Drellincourt propôs o cerebelo como sede da alma, em Bontekoe, Lancisi e La Peyronie, seria o corpo caloso, Willis indicou corpo estriado e por fim, Vieussens idealizou-a no centro oval da substância medular. Eu sei que deixei de citar outros autores importantes para a reflexão, mas as menções aos pensadores citado é só um indicativo de que há uma preocupação em definir aquilo que seria a “alma” humana.
Então, Anaxímenes afirmava que a alma é puro ar. A concepção de alma de Anaxímenes, associando a alma ao elemento AR, é muito intrigante e bastante pertinente quando você compara com a concepção de alma advinda das teorias religiosas. Nas grandes e mais antigas vertentes religiosas a concepção de alma possui características similares ao que foi proposto por Anaxímenes. Nossa referência é a concepção anaximenica de que a alma é ar. A partir dai teremos, concidentemente ou não, em hebraico o termo néphesh  traduzido por alma, na concepção grega a alma conota a psykh­é (o que estaria intrinsicamente ligado a pneuma, provavelmente o termo mais adequado neste contexto), psyché como alma é um concepção superficial, mas comumente utilizado pelos laicos principalmente nas redes de informação (internet), e pode ser traduzido por “alma” ou “vida”(para mim, de forma pessoal, acredito que a terminologia mais adequada para estas seria o verbete bio, se do ponto de vista da vida biológica e do ponto de vista da vida, enquanto estrutura social humana, seria ethos, desta forma a psyché seria a vida mental ou psicológica da pessoa, uma dimensão que, com certeza produziria outra postagem). Ainda ampliando a reflexão de Anaxímenes sobre o ar, e construindo um paralelo com a o conceito de alma, apesar da tradução e adequação semântica, utilizado, alma, etimologicamente, deriva do termo latino animu (ou anima), que significa "o que anima". Seria a fonte da vida de cada organismo, sendo eterna e separada do corpo. Alma não é o mesmo que espírito. Na religião, possui grande importância, conferindo, ao indivíduo, a capacidade de fazer e viver coisas. Nesta perspectiva, tudo que tem vida tem alma (das mais simples criaturas unicelulares, como as amebas, as mais imensas e complexas, como os elefantes) já o espirito seria uma dimensão mais refinada da natureza, talvez, exclusiva do homem.
A concepção de ar como arché em Anaxímenes é tão absurdamente importante que confere uma ‘q’ de universalidade. Não apenas pelo fato de termos citados concepções judaico-cristã que mobilizam concepções de existência ao elemento do ar, mas porque em muitas outras culturas o ar é também principio gerador e criador, senão mantenedor, da vida. Por exemplo, no Hinduísmo Atman ou Atma é a verbete em Sânscrito que significa alma ou sopro vital. Na peculiaridade da teosofia representa a Mônada, o 7º princípio na constituição setenária do Homem, que é o mais elevado princípio do ser humano. É interessante notar que para a teosofia, cada ser humano possui Atman, ou espírito individual, que é um reflexo da Alma Universal. O Atman é substância abstrata que forma o "eu próprio".  O que é mais interessante é que ele possui a característica da igualdade, não difere de tudo o que está no cosmos, exceto pela autoconsciência.
Podemos perceber que quando Anaxímenes elabora a sua arché, e deposita seu principio no AR, ele cria uma possibilidade de reflexão que perpassa uma complexa rede de pensamentos. Provavelmente, Anaxímenes tinha visão holística sobre as representações universais do cosmo. O ar é também simbólico e metafórico, talvez, até poético, mas que desestrutura várias  concepções e perspectivas cosmogônicas de sua época. Apesar de termos pouco acesso diretamente as suas máxima, podemos acessa-las através de outros autores como, por exemplo, Simplício que em seu livro 'Física' nos conta: “Anaxímenes de Mileto, filho de Eurístrates, companheiro de Anaximandro, afirma também que uma só é a natureza subjacente, e diz, como aquele, que é ilimitada, não, porém, indefinida, como aquele (diz), mas definida, dizendo que ela é Ar. Diferencia-se nas substâncias, por rarefação e condensação. Rarefazendo-se, torna-se fogo; condensando-se, vento, depois, nuvem, e ainda mais, água, depois terra, depois pedras, e as demais coisas provêm destas. Também ele faz eterno o movimento pelo qual se dá a transformação”. Pelo que sabemos Anaxímenes escreveu uma obra intitulada Peri Physeos (Sobre a Natureza), mas ela se perdeu ao longo da história. Temos referência a ela a partir de Diógenes. Segundo este autor, Anaxímenes era um escritor robusto que grafava seus textos em dialeto jónico e num estilo bastante lacônico. Segundo outro autor, Plínio, o Velho, em sua famosa obra História Natural (Livro II, Capítulo LXXVI/126), diz que o filósofo Anaxímenes foi o primeiro grego a analisar geometricamente aspectos das sombras para medir as partes e divisões do dia, e desenhou um Relógio de Sol que denominava Sciothericon
Podemos estender ainda mais a nossa reflexão sobre o ar em Anaxímenes, mas devido o tempo e a praticidade das postagens vou ficar por aqui, já me desculpando a prolixidade da postagem, é que muito empolgante debater as ideias dos pré-socráticos, traçar paralelos com outras culturas, outras perspectivas de conhecimentos que se acaba cruzando, influenciando talvez, outras culturas, enfim, é muita coisa para se refletir do que simplesmente dizer em uma única aula, que o ar era a arché de Anaxímenes.

Do ar nascem todas as coisas existentes, as que foram e as que serão, os deuses e as coisas divinas...’

Anaxímenes de Mileto

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