Pular para o conteúdo principal

EVOLUÇÃO DAS ESPÉCIES E A INVERSÃO ANTROPÓLOGICA: UM OLHAR PARA ALÉM DOS PARADIGMAS CIENTIFICOS

EVOLUÇÃO DAS ESPÉCIES E A INVERSÃO ANTROPÓLOGICA: UM OLHAR PARA ALÉM DOS PARADIGMAS CIENTIFICOS

Hoje publico um rascunho do artigo em construção que está intitulado em A Evolução das Espécies e a Inversão Antropológica: Um Olhar Para Além dos Paradigmas Científicos e Criacionistas. Minha proposta nesse artigo é mostrar outras perspectivas, outros pontos de vistas sobre a origem da humanidade, diferentemente das explicações religiosas (criacionismo) e das teorias científicas (evolucionismo e outras). Para isso, trago para dentro da nossa discursão uma das teorias Yanomami sobre o surgimento do homem (ser humano). Os primeiros rascunhos deste artigo surgiram ainda quando eu fazia a pesquisa de campo no rio Marauiá entre os yanomami do noroeste do Amazonas durante os estudos do mestrado.

eu no dia-a-dia do xapono (período de reahu/festa)

Para ampliar os horizontes da proposta colocaremos uma síntese das duas vertentes mais conhecidas atualmente a cerca do surgimento do homem. A origem do homem é um dilema, tanto para o conhecimento religioso, como para o científico.


Então, partiremos a principio da perspectiva cientifica.
Charles Darwin, foi um dos mais célebres cientistas britânicos, nasceu em 12 de fevereiro de 1809 em Shrewsbury. Sua maior, mais importante obra e, provavelmente, a mais conhecida (e menos lida também) foi A Origem das Espécies publicada em 1859. Darwin foi um jovem brilhante, conta em sua biografia que aos 16 anos começou a estudar Medicina na Universidade de Edimburgo. Apaixonado pelas ciências naturais começou a estudar os invertebrados marinhos e, posteriormente, ingressou no ramo das Ciências Naturais em Cambridge. Em 1831, integra a viagem de reconhecimento do HMS Beagle, como naturalista sem remuneração (uma espécie de voluntariado), numa expedição científica. Nesta viagem, realizou importantíssimas e metódicas observações geológicas e biológicas. Cinco anos depois, após o seu regresso à Inglaterra, dedicou-se a reunir e desenvolver as suas ideias sobre a mudança das espécies, observados principalmente nos arquipélagos em que pesquisara. Em 1859, após mais de 20 anos de estudo, publicou a sua teoria A Origem das Espécies através da Seleção Natural. A publicação da obra foi impactante não só a comunidade religiosa (uma vez que se punha radicalmente contrária a teoria criacionista), como também para a comunidade científica, pois gerava controvérsia com as teorias vigentes na época. Charles Darwin morreu a 19 de Abril de 1882 e foi enterrado na Abadia de Westminster, junto de outra grande cientista Isaac Newton.
Embora o foco aqui seja a teoria de Darwin vale ressaltar que existem teorias atuais e mais complexas da evolução. Cientistas como Mayr, Huxley, Dobzhansky, Simpson, entre outros formularam novas teorias que, tendo como base as descobertas de Darwin, passaram a ser chamada de Neodarwinismo, com uma substancial contribuição das leis de Mendel e o fenômeno das mutações genéticas. O Neodarwinismo é conhecido academicamente também como Teoria Sintética da Evolução.

Tá, mas quê que é evolução mesmo? A evolução é uma alteração no perfil genético de uma população de indivíduos que vai tendo lugar através de sucessivos estados temporais (gerações). Estas modificações supõem a integração de novas vantagens competitivas em termos de sobrevivência e podem levar ao surgimento de novas espécies, à adaptação a diferentes ambientes ou à emergência de novidades evolutivas. No início do estudo da evolução biológica, Darwin e Wallace (fulano co-fundador da teoria e quase não citado!) propuseram a seleção natural como principal mecanismo da evolução. E é justamente essa introdução do motor da seleção natural que afasta Darwin da teoria de Lamarck. [1]
Quanto a teoria Criacionista, bem, a questão aqui discutida remete a um amplo debate onde não só a o conhecimento científico (aliás, conhecimento muito recente comparado com a teologia ou a filosofia), mas também filosofia e religião entram em cena (na verdade foram os primeiro, eu é que inverti a ordem de apresentação) para construir diferentes concepções sobre a existência da vida humana. As teorias visavam esclarecer e apontar características aparentemente únicas, enquanto espécime, ou seja, somos seres potenciais (linguagem, religião, cultura, etc) que nos diferenciam do restante dos animais. As manifestações mítico-religiosas remetem a tempos remotos no horizonte da existência do homem que busca resposta para essa questão. Neste aspecto, como também por força da tradição, a teoria criacionista é a que tem maior aceitação, como também é a mais conhecida. Vale ressaltar que quando se fala em teoria criacionista não nos referimos apenas a da tradição cristã, mas de todas aquelas que possuem uma entidade suprema (ou mais), como as religiões indianas, judaica, islâmica, etc. Ou seja, as religiões espalhadas pelo mundo elaboraram uma versão própria da teoria criacionista. Mas também poderíamos estender a teoria criacionista para a dimensão mitológica de alguns povos (mas não a todos os casos, como veremos adiante). Por exemplo, na mitologia grega se atribui a origem do homem aos feitos dos titãs Epimeteu e Prometeu. Epimeteu teria criado os homens sem vida, imperfeitos e feitos a partir de um molde de barro (o que será visto na cultura religiosa judaico-cristã). Por compaixão, seu irmão Prometeu resolveu roubar o fogo do Vulcano para dar vida à raça humana. Outro exemplo vem da milenar cultura chinesa, em sua mitologia atribui a criação da raça humana à deusa Nu Wa entidade que vivia em plena solidão. Um dia, ao perceber sua sombra sob o banzeiro de um rio, resolveu criar seres à sua semelhança.
No cristianismo, a Bíblia é a base e fonte explicativa sobre a criação do homem. Na narrativa bíblica, o homem foi concebido logo que Deus criou os céus e a terra. Segundo o relato bíblico, o homem, feito a partir do barro, teria ganhado vida quando Deus assoprou o fôlego da vida em suas narinas [2]. “E Deus o fez a sua imagem e semelhança” culminando na criação do homem.

Assim, se o evolucionismo se apoia em evidências científicas advinda das descobertas paleontológicas, morfológicas, biogeográficas, embriológicas e bioquímicas, enquanto a teoria criacionista se apoia em descobertas exegéticas, arqueológicas, mas, principalmente na fé de que assume essa perspectiva.
Aqui no nosso blog não colocarei os contra-argumentos desenvolvido no artigo original, apontando as lacunas do pensamento cientifico e nem a exegese dos textos bíblicos (desenvolvida a partir da linguística, tendo como base o grego e o hebraico), que ficará para outra oportunidade (quero evitar que a postagem também se torne demasiadamente prolixa).
Como diria Kuhn “os dados não são inequivocamente estáveis” (KUHN, 1975) o que nos abre espaços para reflexões e aprofundar o tema sobre a origem do homem. Ainda segundo o autor, cada uma dessas interpretações (necessariamente diferentes) pressupõe um paradigma. E é nesta perspectiva que introduzimos a teoria Yanomami sobre a origem do homem.
            Na cultura oral yanomami [3], encontramos uma série de relatos mitológicos, que eles denominam de wãnowãno, o que seria mais próximo do termo mito grego (como narrativa). O  wãno é polissêmico pode ser traduzido como história, mas também é narrativa, informação, locução e do radical - deriva verbos importantes como hai (falar, comunicar, dialogar) e outros.
           FOTO
            Durante a coleta e na auscultação [4] dos wãnowãno (mitos) percebi vários conceitos que remetia as origens do homem, origens no plural porque diferentemente da cultura ocidental das sociedades modernas, onde a dicotomia é radical (ou se acredita na ciência ou na fé/religião) os yanomami possuem uma visão multifacetada da realidade, ou seja, um objeto ou fato está relacionado a uma série de possibilidade de configurações (a la wittgenstein), como diria Humberto Eco, para um yanomami um fato está aberto para uma multiplicidade de vozes. Nesta dinâmica é possível você se deparar com um wãno que diga o seguinte
1-    antigamente os homens copulavam na batata da perna um dos outros, a batata engravidavam e dai os homens nasciam... não existia mulher, mas, por acaso um dia nasceu um mulher da batata de um yanomami...
2-    antes os yanomami não existiam só Horonami [5], antes a kurata (banana) não existia. Um dia Horonami estava andando e estava com fome e subiu em uma árvore e se esticou para apanhar uma kurata...
3-    Horonami se encontrou com Irariwë, mas, Irariwe não queria seguir as ordens de Horonami, então horonami criou um yanomami para plantar mandioca e fazer festa porque horonami queria cheirar paricá
4-    naqueles tempos não existia mulher, Hoaxoriwë passeando pela urihi (floresta) se encontrou em apuros porque estava com muito desejo sexual, então ele olhou para cima de um açaizeiro e viu uma mõkomõko(mulher jovem) ele derrubou o açaizeiro e copulou com ela...
Dos fragmentos dos wãno acima podemos observar que as coisas surgem tanto de forma espontânea e instantaneamente, como fruto de uma ação que passam a existir conforme:
a) entram na intencionalidade da personagem mítica (como disse um velhinho yanomami, ela – a kurata - não existia, mais estava lá) [2 e 4] e;
b) as coisas são criadas, conforme a necessidade, voluntariamente ou não [1 e 3].

Desses fragmentos poderíamos fazer reflexões interessantes, entretanto, o meu foco aqui é outro. Observei (e outros antropólogos também já observaram, como Jacques Lizot) uma abordagem diferente da origem do homem, os dados aparecem em frequentes wãno, não só do grupo que pesquisei, mas também em outros grupos yanomami (Povos Yanomami) inclusive na Venezuela. Observe um pequeno trecho [6] do wãno HEWËRIWË

HEWËRIWË
A1 - Hewëriwë Yanomami të pëni a kãi rë përionowehei.
Antigamente, Morcego vivia com os Yanomami.
A2 - Ai të pë rë reahumouwei të pëniöyõno mo rë reahuaiwehei.
Seus parentes foram convidados para uma festa para comer milho.
A3 - Yami a nakai  ma mahei makui, ihi të pë pruka ma nakaiwehei makui, Hewëriwëxo, pë yesi Tëpëriyomaxo yami kipi  rë hupirayonowei.
Morcego não foi o único convidado. E mesmo que muitos foram chamados, Morcego, preferiu ia a festa sozinho com Mulher-Tamanduá, sua sogra.
[...]
A11- öiha rë na yaweremai  ha he haruponi ,  pei rë wexi pëni ha rë moroxi pë tõwetamaiö rë he harunowei.
- Foi lá que copulou incestuosamente com ela, toda noite. O pênis ficava com o bálano descoberto, no meio dos pelos pubianos de Mulher-Tamanduá.
[...]
A14 – Yesi rë iha himo rë a rë huuawei a ha huhetireheni, pei rë texina ka yakë ha, ëyëha rë, himo rë e pata ha tiwëhëyaheni: “kraxi!”, e pata himo ha tamaheni, e pata rë kareramanowehei. ihi  pë siohapiö rë iha: “Ta!”. Xotokoma rë a kuohorayopë ha a miö wërëa rë xoaketayonowei.
Em seguida, tiraram do telhado um cacete achatado e pontiagudo e: “kraxi” o cravaram bem na base do traseira de Mulher-Tamanduá. É lá que ficou plantado. Voltaram-se depois para o genro dela, batendo também nele. Logo, ele se transformou em morcego e foi voando lá para cima duma árvore xotokoma, onde se pendurou, de cabeça para baixo.
A15 – tëpëriyoma pë yesi rë e pehi kai rë horeprarihërinowei. Ihiöei pei rë texina hami, e himo no uhutipiö xatia kuyahi. inaha ki ha tapiprariheni, mo yono ha reahuariheni, tëpë matë waia ha xoaponi , pei hewëriwë a kai rë përionowehei.
A sogra se tinha metamorfoseado em tamanduá e correu, saindo fora da casa. A cauda dos tamanduás é aquele cacete achatado que, desde aquele tempo, ficou no traseiro. Foi assim que os Yanomamiö procederam. Depois, comeram o milho e fizeram a festa. Aí, tudo ficou silencioso: a festa tinha acabado.
[...]
Os fragmentos (com tradução não literal) foram retirados de Heweriwë të wãno, nele e em outros wãno, nele o tema da trama se desenrola dentro de um contexto de proibição e formação de tabu (o genro copula com a sogra), mas há outros aspectos, não sexuais, que fazem parte de um contexto mais amplo que são: a) o tempo primordial em que o acontecimento é desenrolado; b) O convite que nos remete a um contexto de hospitalidade (comensalidade versus hostilidade), dádiva e contradádiva e, por fim, c) regras sociais (não necessariamente os tabus e proibições).
Em vários wãno em que eu pude escutar pessoalmente, e ler em trabalhos de outros antropólogos que estudaram a cultura do Povo Yanomami, uma parte da narrativa sempre me chamou atenção, a transformação nominal e substancial que ocorrem com as personagens. Temos no trecho heweriwë que é intraduzível no sentido do seu termo, mas poderíamos conceituar proximamente como homem-morcego, ou morcego-gente. Heweriwë sofre uma mutação, transformação de gente para o animal, mediante o rompimento com as normas ética do grupo (causa incesto ao ter relações sexuais com a sogra) a transformação tem aqui um duplo sentido: a) é uma transformação simbólica baseado na moral e na ética social do grupo e b) uma transformação substancial, a matéria ou a forma do homem passa para a forma animal. As relações sociais é o marcador do mundo humano e, consequentemente, influenciará a forma. Se em Darwin o processo parte do biológico, para os yanomami o processo é ético, quanto menos ético, menos humano. Ao contrário das teorias evolucionista ou criacionista a teoria yanomami, pelo que é percebido nas suas narrativas, relembra constantemente que o humano é também um ente da natureza comum. Em Darwin o origem do homem provem de um espécie de primata que sofreu varrições biológicas ate culminar no homo sapiens. Na teoria yanomami o homo sapien já existia o seu precedente (australopitecos anamesnisi) não. Aqui há uma inversão antropológica da teoria darwiniana. O homem deixa de ser homem gradativamente se tornando completamente animal quando os princípios éticos e morais deixam de nortear o horizonte da vivencia humana (é Heweriwë - homem - se transformando em hewe –morcego).

 Alguém poderia replicar: mas não é origem do homem é a origem dos animais. E de fato é. Na teoria, não se explica como o homem surgiu e sim como os animais surgiram. Determinar o mundo humano do mundo animal é uma investida para apurar a própria origem humana. Entretanto, como a perspectiva yanomami é múltipla, encontraremos várias explicações para a origem do primeiro yanomami (em outras palavras do primeiro homem). Vale ressaltar que aqui nesse contexto (na cosmologia yanomami) há uma separação radical na concepção própria do que seja humano.
A separação entre homem e animal é uma questão não biológica, mas conceitual, ou como diria Garcia (2013), é uma película tênue tecida na trama cultural. A inversão antropológica realizada pelos yanomami nos remete a uma reflexão profunda e pertinente. Então, lança-se uma questão: o que é ser homem e o que é ser animal?
Dentro de uma visão ocidental a relação que define quem é humano e quem é animal é problemática na medida em que não se leva em consideração que o humano é um animal, como diria Derrida (2011), tão semelhante ao animal que o olha.  E baseando-me na filosofia pragmática de Habermas (2010), somos seres discursivos e, por isso, somos para o outro o discurso no qual nos encaixamos. Somos avaliados segundo o discurso que nos é oferecido como verdadeiro. O que é então ser um ser humano? [7]
Ser um ser humano é, entre as suas múltiplas vozes, ser um animal discursivo. Levar em consideração que somos um animal discursivo não é priorizar a linguagem per si, pois a linguagem a tempo deixou de ser simplesmente um meio de comunicação ou um instrumento de representação do mundo, ela é o lócus de onde nos definimos enquanto tal. Em outras palavras, referir-se ao animal discursivo é referir que o sujeito vai se determinar na linguagem e não mais a partir dos lugares onde tradicionalmente é definido, ou seja, no biológico. Mas, é justamente nessa ruptura que o dilema emerge. Pois, poderíamos abstrair disso é que se o ser humano é um ser discursivo, então, na medida em que estabelece seus discursos ele erguer uma hierarquia em que provavelmente consolidará uma relação antagônica e antiética. Sintetizando, o ser humano se tornar um ser egocêntrico em relação ao outro que olha, que observa, que descrimina como menos humano, ou como diria os pós-modernos, um inumano.


(para muitos filósofos, os inumanos aos olhos da sociedade poderia ser considera os mendigos, por exemplo, pois suas dores não são as dores da sociedade moderna, principalmente quando o horizonte desta sociedade é pautada no capitalismo)

Os inumanos é um conceito atualmente utilizado para caracterizar a falta de alteridade. O problema é que a alteridade é pensada entre pessoas, sendo assim, o que aconteceria se o conceito de pessoas fosse mais amplo e abrangente do que o que encontramos na sociedade ocidental, ou mais ampla do que o conceito de homem? Entre muitos grupos indígenas que tem formação social a partir de clãs, encontramos proibições e tabus alimentares, gente do clã do mutum (PAUXI TUBEROSA), por exemplo, não pode comer o mutum porque aqui o mutum, não está ligado ao sagrado religiosamente falando, mas porque é uma pessoa. Dessa forma, em uma possível hierarquia da existência, de imediato, os inumanos, neste contexto, equivaleria aos animais. A leitura da cosmovisão yanomami da reintegração do animal/homem a natureza, degeneração ética, opera um deslocamento epistemológico, no conceito de homem. O duplo, heweriwë e hewe, opera não em termo de ‘homem’, entendido como biológico, ou seja, um corpo metamorfoseado, mas em termo de pessoa. Nesta perspectiva yanomami, a condição de pessoa não está intrínseca ao homem. Por isso, que o inumanos, os animais aos olhos do homem, podem ser uma pessoa, bem como o homem pode, ou não, a vir a ser uma pessoa.
Para ampliar mais essa noção de pessoa observe esse trecho do Nativo Relativo de Viveiros de Castro (2002) onde faz um debate sobre sua crença nos conceitos indígenas, quando interrogado pela sua aluna sobre se acreditava no que os indígenas afirmavam, como, por exemplo, que os pecaris (porcos) são humano.

A estreiteza intelectual que ronda a antropologia, em casos como esse, consiste na redução das noções de pecari e de humano exclusivamente a variáveis independentes de uma proposição, quando elas devem ser vistas — se queremos levar os índios a sério — como variações inseparáveis de um conceito. Dizer que os pecaris são humanos, como já observei, não é dizer algo apenas sobre os pecaris, como se ‘humano’ fosse um predicado passivo e pacífico (por exemplo, o gênero em que se inclui a espécie pecari); tampouco é dar uma simples definição verbal de ‘pecari’, do tipo “‘surubim’ é (o nome de) um peixe”. Dizer que os pecaris são humanos é dizer algo sobre os pecaris e sobre os humanos, é dizer algo sobre o que pode ser o humano: se os pecaris têm a humanidade em potência, então os humanos teriam, talvez, uma potência-pecari? Com efeito, se os pecaris podem ser concebidos como humanos, então deve ser possível conceber os humanos como pecaris: o que é ser humano, conseqüências disto? Que conceito se pode extrair de um enunciado como “os pecaris são humanos”? Como transformar a concepção expressa por uma proposição desse tipo em um conceito? Esta é a verdadeira questão.[...Os pecaris são pecaris e humanos, são humanos naquilo que os humanos não são pecaris; os pecaris implicam os humanos, como ideia, em sua distância mesma diante dos humanos. Assim, quando se diz que os pecaris são humanos, não é para identificá-los aos humanos, mas para diferenciá-los de si mesmos — e a nós de nós mesmos.

Por fim, a inversão antropológica realizada pelos yanomami abre espaço para um debate muito atual, que é alteridade, o outro. Filósofos como Habermas, Martin Bubber, Levinas e outros, procuraram entender o ser humanos dentro da alteridade, do discurso, do diálogo, autores como Bruno Latour, Viveiros de Castro, Roberto da Matta, Cardoso de Oliveira, Jacques Derrida questionam os conceitos em que são fundados as nossas “crenças cientifica”.
Provavelmente vocês sentiram falta de vários autores, da filosofia a antropologia, que certamente enriqueceria o nosso artigo, mas a minha intenção não foi de aprofundar e sim de demonstrar como o que pensam os yanomami em sua cosmovisão que, aliás, é muito pertinente, principalmente quando olhamos do ponto de vista histórico e nos perguntamos, onde estava a humanidade no extermínio em massa dos judeus? 

Na guerra do Vietnã e em muitos casos históricos de brutalidade contra o próprio ser humano? 

Sempre seremos primitivos, literalmente, quando tentamos sermos civilizados, ou quando encontramos a nossa humanidade hierarquizada pela linha daquilo que consideramos inumanos aos nossos olhos... 

A inversão antropológica realizada pelos yanomami em seus wãnopë nos causa certa inquietação, pois nos convida a sermos sujeitos éticos e lançar bases para se repensar o significado de ser humano...


Notas

1-   Os dados sobre Dawin e a evolução não são explorados de forma prolixa cabendo ao leitor procurar pesquisar sobre os mesmo caso se ache instigado.
2-   Em relação ao barro, no artigo original eu aprofundo mais a relação nominal dos termos e do sopro. Outras culturas também usam o termo barro (terra/areia) e suas narrativas, mas com nomenclaturas distinta criando um mosaico intrigantes de relação e “coincidência” incríveis.
3-   Os dados aqui apresentados são das minhas anotações durante o campo. Meu foco na pesquisa era o ethos yanomami e suas mitologias, mas devido a gama de informação pude me deparar com outros temas importante para a compressão da cosmovisão e cosmologia do povo yanomami.
4-   A minha fluência e o bom domínio da língua yanomami me ajudaram a compreender melhor os mitos e os costumes deste povo a essa acrescento a participação dos rituais osteofágicos, dos cantos, das reuniões, das festas e a inserção na vida cotidiana, onde fui bem acolhido.
5-   Horonami é uma entidade criadora, mais precisamente (entre algumas aldeia foi o primeiro “yanomami” que existiu), mas não equivalente a Deus, porque ele começou a existir junto com tudo o que já existia, ele não é anterior ou posterior natureza.
6-   O texto aqui você pode encontrar em português e yanomami na integra minha dissertação de mestrado que está acessível aqui mesmo no blog.
7-   Como disse Sr. Tiago, exi kë të napëpë? Exi kë të yaropë? Exi kë të yanomami? Kamiyë pëmakini ai të wã hai pëma taaimi kunoha  (trad: o que é ser branco? O que é ser animal? O que é ser yanomami? Se não deixamos o outro falar?)

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

A diferença entre “não posso” e “não quero”.

A diferença entre “não posso” e “não quero”. Gostaria de partilhar aqui uma reflexão filosófica apoiada na linguagem que, em primeiro momento, parece uma bobagem, mas que pode revelar muito da dimensão inconsciente (se de médico e de louco todo mundo tem um pouco, de psicólogo então, nem se fala!) do ser humano na esfera da inter-relação com o outro: a diferença substancial entre o não posso e o não quero . Esta reflexão nasceu de uma curiosidade sobre o uso da linguagem durante as leituras de Habermas, Austin, Lyons e outros lingüistas e filósofos da linguagem. A princípio, ambas as respostas para uma dada circunstância parece ecoar definitivamente como a não possibilidade da realização do fato em questão. Ora, se durante uma visita a um amigo, por exemplo, me convidasse para tomar uma xícara de café e eu respondesse “não posso, obrigado!” ou “não quero, obrigado!”, ambas as respostas, marcaria a negação do ato convidativo a ser realizado. Ou em outro contexto, se minha mãe c

ESTÉTICA E CORPORALIDADE ENTRE OS YANOMAMI

ESTÉTICA E CORPORALIDADE ENTRE OS YANOMAMI DO RIO MARAUIÁ Sabem por que eu adoro antropologia? Porque não é apenas uma ciência, mas, simplesmente porque ela abre a cortina para um mundo totalmente diferente e nós, antropólogos, imbuído nestes mundos como peregrinos, nunca seremos totalmente o outro que está ali a nossa frente e, o pior, nunca voltaremos a sermos o que éramos antes da imersão.  Lembro que tinha uma anseio tão grande em aprender a língua yanomami que nos primeiros meses de campo cheguei a sonhar, literalmente, em yanomami. Acreditava, e acredito criticamente, na utopia malinowkiana da imersão na cultura do outro e foi o que tentei fazer através da língua (também cantei, dancei e participei dos rituais mais profundos[1] que uma pessoa “estranha” poderia participar). A cultura do povo Yanomami é singular, como são singulares as mais diversas culturas entre si. Porém, há tantos elementos sui generi que sempre que volto a convivência com os yanomami me espanto co

POROMONGUETÁ: A LÍNGUA DOS TREMEMBÉ.

POROMONGUETÁ: A LÍNGUA DOS TREMEMBÉ. olha ai a gente de novo! Prontos para mais uma leitura? Até agora postei sobre vários assuntos, mas ainda não abordei aspecto da cultura do meu próprio povo, do Povo Tremembé. Entre os vários elementos que poderia abordar, de forma mais peculiar, da parte cultural e estrutura social, eu irei me ater ao que toca a dimensão lingüística. Gostaria de partilhar junto com esta postagem um sentimento particular. Acredito que eu seja o primeiro a falar do Poromonguetá. Embora eu seja antropólogo, tive uma boa formação na área da lingüística devido a convivência e as partilhas com meu orientador do mestrado Frantomé B. Pacheco que é um excelente lingüístico. Por possuir, hoje, um conhecimento lingüístico suficiente para organizar nossa língua e apresentá-la de forma mais geral. Até então, ainda esses dados permaneciam na obscuridade, pois, de alguma forma, eu tinha um pouco de receio de comentar sobre eles. Ora, nós indígenas do nordeste, já somos, dev