EVOLUÇÃO
DAS ESPÉCIES E A INVERSÃO ANTROPÓLOGICA: UM OLHAR PARA ALÉM DOS PARADIGMAS
CIENTIFICOS
Hoje
publico um rascunho do artigo em construção que está intitulado em A Evolução
das Espécies e a Inversão Antropológica: Um Olhar Para Além dos Paradigmas Científicos
e Criacionistas. Minha proposta nesse artigo é mostrar outras
perspectivas, outros pontos de vistas sobre a origem da humanidade,
diferentemente das explicações religiosas (criacionismo)
e das teorias científicas (evolucionismo
e outras). Para isso, trago para dentro da nossa discursão uma das teorias
Yanomami sobre o surgimento do homem (ser humano). Os primeiros
rascunhos deste artigo surgiram ainda quando eu fazia a pesquisa de campo no
rio Marauiá entre os yanomami do noroeste do Amazonas durante os estudos do
mestrado.
eu no dia-a-dia do xapono (período de reahu/festa)
Para ampliar os horizontes da proposta colocaremos uma síntese das duas vertentes mais conhecidas atualmente a cerca do surgimento do homem. A origem do homem é um dilema, tanto para o conhecimento religioso, como para o científico.
Então, partiremos a principio da perspectiva cientifica.
Charles Darwin, foi um dos mais célebres cientistas britânicos,
nasceu em 12 de fevereiro de 1809 em Shrewsbury. Sua maior, mais importante obra e, provavelmente, a mais
conhecida (e menos lida também) foi A Origem das Espécies publicada em 1859. Darwin foi um
jovem brilhante, conta em sua biografia que aos 16 anos começou a
estudar Medicina na Universidade de Edimburgo. Apaixonado pelas ciências
naturais começou a estudar os invertebrados marinhos e, posteriormente, ingressou
no ramo das Ciências Naturais em Cambridge. Em 1831, integra a viagem de
reconhecimento do HMS Beagle, como naturalista sem remuneração (uma espécie de
voluntariado), numa expedição científica. Nesta viagem, realizou
importantíssimas e metódicas observações geológicas e biológicas. Cinco anos
depois, após o seu regresso à Inglaterra, dedicou-se a reunir e desenvolver as suas ideias sobre a mudança das espécies,
observados principalmente nos arquipélagos em que pesquisara. Em 1859, após
mais de 20 anos de estudo, publicou a sua teoria A Origem das
Espécies através da Seleção Natural. A publicação da obra foi impactante
não só a comunidade religiosa (uma vez que se punha radicalmente contrária a
teoria criacionista), como também para a comunidade científica, pois gerava
controvérsia com as teorias vigentes na época. Charles Darwin morreu a 19 de
Abril de 1882 e foi enterrado na Abadia de Westminster, junto de outra grande
cientista Isaac Newton.
Embora
o foco aqui seja a teoria de Darwin vale ressaltar que existem teorias atuais e
mais complexas da evolução. Cientistas como Mayr, Huxley, Dobzhansky, Simpson,
entre outros formularam novas teorias que, tendo como base as descobertas de
Darwin, passaram a ser chamada de Neodarwinismo, com uma substancial
contribuição das leis de Mendel e o fenômeno das mutações genéticas. O
Neodarwinismo é conhecido academicamente também como Teoria Sintética da Evolução.
Tá, mas quê que é evolução mesmo? A evolução é uma
alteração no perfil genético de uma população de indivíduos que vai tendo lugar
através de sucessivos estados temporais (gerações). Estas modificações supõem a
integração de novas vantagens competitivas em termos de sobrevivência e podem
levar ao surgimento de novas espécies, à adaptação a diferentes ambientes ou à
emergência de novidades evolutivas. No início do estudo da evolução biológica,
Darwin e Wallace (fulano co-fundador da teoria e quase não citado!) propuseram
a seleção natural como principal
mecanismo da evolução. E é justamente essa introdução do motor da seleção natural que afasta Darwin da
teoria de Lamarck. [1]
Quanto a
teoria Criacionista, bem, a questão aqui discutida remete a um amplo debate
onde não só a o conhecimento científico (aliás, conhecimento muito recente
comparado com a teologia ou a filosofia), mas também filosofia e religião entram
em cena (na verdade foram os primeiro, eu é que inverti a ordem de
apresentação) para construir diferentes concepções sobre a existência da vida
humana. As teorias visavam esclarecer e apontar características aparentemente
únicas, enquanto espécime, ou seja, somos seres potenciais (linguagem,
religião, cultura, etc) que nos diferenciam do restante dos animais. As
manifestações mítico-religiosas remetem a tempos remotos no horizonte da
existência do homem que busca resposta para essa questão. Neste aspecto, como
também por força da tradição, a teoria criacionista é a que tem maior aceitação,
como também é a mais conhecida. Vale ressaltar que quando se fala em teoria
criacionista não nos referimos apenas a da tradição cristã, mas de todas
aquelas que possuem uma entidade suprema (ou mais), como as religiões indianas,
judaica, islâmica, etc. Ou seja, as religiões espalhadas pelo mundo elaboraram
uma versão própria da teoria criacionista. Mas também poderíamos estender a
teoria criacionista para a dimensão mitológica de alguns povos (mas não a todos
os casos, como veremos adiante). Por exemplo, na mitologia grega se atribui a
origem do homem aos feitos dos titãs Epimeteu
e Prometeu. Epimeteu teria criado os
homens sem vida, imperfeitos e feitos a partir de um molde de barro (o que será
visto na cultura religiosa judaico-cristã). Por compaixão, seu irmão Prometeu
resolveu roubar o fogo do Vulcano
para dar vida à raça humana. Outro exemplo vem da milenar cultura chinesa, em
sua mitologia atribui a criação da raça humana à deusa Nu Wa entidade que vivia
em plena solidão. Um dia, ao perceber sua sombra sob o banzeiro de um rio,
resolveu criar seres à sua semelhança.
No
cristianismo, a Bíblia é a base e fonte explicativa sobre a criação do homem. Na
narrativa bíblica, o homem foi concebido logo que Deus criou os céus e a terra.
Segundo o relato bíblico, o homem, feito a partir do barro, teria ganhado vida
quando Deus assoprou o fôlego da vida em suas narinas [2]. “E Deus o fez a sua
imagem e semelhança” culminando na criação do homem.
Assim, se
o evolucionismo se apoia em evidências científicas
advinda das descobertas paleontológicas, morfológicas, biogeográficas,
embriológicas e bioquímicas, enquanto a teoria criacionista se apoia em
descobertas exegéticas, arqueológicas, mas, principalmente na fé de que assume
essa perspectiva.
Aqui no
nosso blog não colocarei os contra-argumentos desenvolvido no artigo original,
apontando as lacunas do pensamento cientifico e nem a exegese dos textos
bíblicos (desenvolvida a partir da linguística, tendo como base o grego e o
hebraico), que ficará para outra oportunidade (quero evitar que a postagem
também se torne demasiadamente prolixa).
Como
diria Kuhn “os dados não são inequivocamente estáveis” (KUHN, 1975) o
que nos abre espaços para reflexões e aprofundar o tema sobre a origem do
homem. Ainda segundo o autor, cada uma dessas interpretações (necessariamente
diferentes) pressupõe um paradigma. E é nesta perspectiva que introduzimos a teoria
Yanomami sobre a origem do homem.
Na cultura oral yanomami [3],
encontramos uma série de relatos mitológicos, que eles denominam de wãnowãno, o que seria mais próximo do
termo mito grego (como narrativa). O wãno é polissêmico pode ser traduzido
como história, mas também é narrativa, informação, locução e do radical wã- deriva verbos importantes como wã hai
(falar, comunicar, dialogar) e outros.
FOTO
Durante a coleta e na auscultação
[4] dos wãnowãno (mitos) percebi
vários conceitos que remetia as origens do homem, origens no
plural porque diferentemente da cultura ocidental das sociedades modernas, onde
a dicotomia é radical (ou se acredita na ciência ou na fé/religião) os yanomami
possuem uma visão multifacetada da realidade, ou seja, um objeto ou fato está
relacionado a uma série de possibilidade de configurações (a la wittgenstein), como diria Humberto
Eco, para um yanomami um fato está aberto para uma multiplicidade de vozes.
Nesta dinâmica é possível você se deparar com um wãno que diga o seguinte
1- antigamente os homens copulavam na
batata da perna um dos outros, a batata engravidavam e dai os homens nasciam...
não existia mulher, mas, por acaso um dia nasceu um mulher da batata de um
yanomami...
2- antes os yanomami não existiam só
Horonami [5], antes a kurata
(banana) não existia. Um dia Horonami estava andando e estava com fome e subiu
em uma árvore e se esticou para apanhar uma kurata...
3- Horonami se encontrou com Irariwë,
mas, Irariwe não queria seguir as ordens de Horonami, então horonami
criou um yanomami para plantar mandioca e fazer festa porque horonami queria
cheirar paricá
4- naqueles tempos não existia mulher,
Hoaxoriwë passeando pela urihi (floresta) se encontrou em apuros porque estava
com muito desejo sexual, então ele olhou para cima de um açaizeiro e viu uma
mõkomõko(mulher jovem) ele derrubou o açaizeiro e copulou com ela...
Dos
fragmentos dos wãno acima podemos
observar que as coisas surgem tanto de forma espontânea e instantaneamente, como
fruto de uma ação que passam a existir conforme:
a)
entram na intencionalidade da personagem mítica (como disse um velhinho
yanomami, ela – a kurata - não
existia, mais estava lá) [2 e 4] e;
Desses
fragmentos poderíamos fazer reflexões interessantes, entretanto, o meu foco
aqui é outro. Observei (e outros antropólogos também já observaram, como
Jacques Lizot) uma abordagem diferente da origem do homem, os dados aparecem em
frequentes wãno, não só do grupo que
pesquisei, mas também em outros grupos yanomami (Povos Yanomami) inclusive na
Venezuela. Observe um pequeno trecho [6] do wãno
HEWËRIWË
HEWËRIWË
A1 -
Hewëriwë Yanomami të pëni a kãi rë përionowehei.
Antigamente,
Morcego vivia com os Yanomami.
A2 - Ai të
pë rë reahumouwei të pëniöyõno mo rë reahuaiwehei.
Seus
parentes foram convidados para uma festa para comer milho.
A3 - Yami
a nakai ma mahei makui, ihi
të pë pruka ma nakaiwehei makui, Hewëriwëxo, pë yesi Tëpëriyomaxo yami kipi
rë hupirayonowei.
Morcego
não foi o único convidado. E mesmo que muitos foram chamados, Morcego, preferiu
ia a festa sozinho com Mulher-Tamanduá, sua sogra.
[...]
A11- öiha rë na yaweremai ha he haruponi , pei rë wexi pëni ha rë moroxi pë
tõwetamaiö rë he harunowei.
-
Foi lá que copulou incestuosamente com ela, toda noite. O pênis ficava com o
bálano descoberto, no meio dos pelos pubianos de Mulher-Tamanduá.
[...]
A14 – Yesi
rë iha himo rë a rë huuawei a ha huhetireheni, pei rë texina ka yakë ha,
ëyëha rë, himo rë e pata ha tiwëhëyaheni: “kraxi!”, e pata himo ha
tamaheni, e pata rë kareramanowehei. ihi pë siohapiö
rë iha: “Ta!”. Xotokoma rë a kuohorayopë ha a miö
wërëa rë xoaketayonowei.
Em
seguida, tiraram do telhado um cacete achatado e pontiagudo e: “kraxi” o
cravaram bem na base do traseira de Mulher-Tamanduá. É lá que ficou plantado. Voltaram-se
depois para o genro dela, batendo também nele. Logo, ele se transformou em
morcego e foi voando lá para cima duma árvore xotokoma, onde se pendurou, de
cabeça para baixo.
A15 – tëpëriyoma
pë yesi rë e pehi kai rë horeprarihërinowei. Ihiöei
pei rë texina hami, e himo no uhutipiö
xatia kuyahi. inaha ki ha tapiprariheni, mo
yono ha reahuariheni, tëpë matë waia ha xoaponi , pei
hewëriwë a kai rë përionowehei.
A sogra se tinha metamorfoseado em tamanduá e correu, saindo fora da
casa. A cauda dos tamanduás é aquele cacete achatado que, desde aquele tempo,
ficou no traseiro. Foi assim que os Yanomamiö procederam. Depois, comeram o milho e fizeram a festa. Aí, tudo
ficou silencioso: a festa tinha acabado.
[...]
Os
fragmentos (com tradução não literal) foram retirados de Heweriwë të wãno, nele e em outros wãno, nele o tema da trama se desenrola dentro de um contexto de
proibição e formação de tabu (o genro
copula com a sogra), mas há outros aspectos, não sexuais, que fazem parte de um
contexto mais amplo que são: a) o tempo primordial em que o acontecimento é
desenrolado; b) O convite que nos remete a um contexto de hospitalidade (comensalidade versus
hostilidade), dádiva e contradádiva
e, por fim, c) regras sociais (não necessariamente os tabus e proibições).
Em
vários wãno em que eu pude escutar
pessoalmente, e ler em trabalhos de outros antropólogos que estudaram a cultura
do Povo Yanomami, uma parte da narrativa sempre me chamou atenção, a transformação nominal e substancial que
ocorrem com as personagens. Temos no trecho heweriwë
que é intraduzível no sentido do seu termo, mas poderíamos conceituar
proximamente como homem-morcego, ou morcego-gente. Heweriwë sofre uma mutação, transformação de gente para o animal,
mediante o rompimento com as normas ética do grupo (causa incesto ao ter
relações sexuais com a sogra) a transformação tem aqui um duplo sentido: a) é
uma transformação simbólica baseado na moral e na ética social do grupo e b)
uma transformação substancial, a matéria ou a forma do homem passa para a forma
animal. As relações sociais é o marcador do mundo humano e, consequentemente, influenciará
a forma. Se em Darwin o processo parte do biológico, para os yanomami o
processo é ético, quanto menos ético, menos humano. Ao contrário das teorias
evolucionista ou criacionista a teoria yanomami, pelo que é percebido nas suas
narrativas, relembra constantemente que o humano é também um ente da natureza
comum. Em Darwin o origem do homem provem de um espécie de primata que sofreu
varrições biológicas ate culminar no homo
sapiens. Na teoria yanomami o homo
sapien já existia o seu precedente (australopitecos
anamesnisi) não. Aqui há uma inversão antropológica da teoria darwiniana. O
homem deixa de ser homem gradativamente se tornando completamente animal quando
os princípios éticos e morais deixam de nortear o horizonte da vivencia humana
(é Heweriwë - homem - se
transformando em hewe –morcego).
Alguém
poderia replicar: mas não é origem do
homem é a origem dos animais. E de fato é. Na teoria, não se explica como o
homem surgiu e sim como os animais surgiram. Determinar o mundo humano do mundo
animal é uma investida para apurar a própria origem humana. Entretanto, como a
perspectiva yanomami é múltipla, encontraremos várias explicações para a origem
do primeiro yanomami (em outras palavras do primeiro homem). Vale ressaltar que
aqui nesse contexto (na cosmologia yanomami) há uma separação radical na
concepção própria do que seja humano.
A
separação entre homem e animal é uma questão não biológica, mas conceitual, ou
como diria Garcia (2013), é uma película tênue tecida na trama cultural. A
inversão antropológica realizada pelos yanomami nos remete a uma reflexão
profunda e pertinente. Então, lança-se uma questão: o que é ser homem e o que é
ser animal?
Dentro
de uma visão ocidental a relação que define quem é humano e quem é animal é
problemática na medida em que não se leva em consideração que o humano é um
animal, como diria Derrida (2011), tão semelhante ao animal que o olha. E baseando-me na filosofia pragmática de
Habermas (2010), somos seres discursivos e, por isso, somos para o outro o
discurso no qual nos encaixamos. Somos avaliados segundo o discurso que nos é
oferecido como verdadeiro. O que é então ser um ser humano? [7]
Ser
um ser humano é, entre as suas múltiplas vozes, ser um animal discursivo. Levar
em consideração que somos um animal discursivo não é priorizar a linguagem per si,
pois a linguagem a tempo deixou de ser simplesmente um meio de comunicação ou
um instrumento de representação do mundo, ela é o lócus de onde nos definimos enquanto tal. Em outras palavras,
referir-se ao animal discursivo é referir que o sujeito vai se determinar na
linguagem e não mais a partir dos lugares onde tradicionalmente é definido, ou
seja, no biológico. Mas, é justamente nessa ruptura que o dilema emerge. Pois,
poderíamos abstrair disso é que se o ser humano é um ser discursivo, então, na
medida em que estabelece seus discursos ele erguer uma hierarquia em que
provavelmente consolidará uma relação antagônica e antiética. Sintetizando, o
ser humano se tornar um ser egocêntrico em relação ao outro que olha, que observa,
que descrimina como menos humano, ou como diria os pós-modernos, um inumano.
(para muitos filósofos, os inumanos aos olhos da sociedade poderia ser considera os mendigos, por exemplo, pois suas dores não são as dores da sociedade moderna, principalmente quando o horizonte desta sociedade é pautada no capitalismo)
Os
inumanos é um conceito atualmente utilizado para caracterizar a falta de
alteridade. O problema é que a alteridade é pensada entre pessoas, sendo assim,
o que aconteceria se o conceito de pessoas fosse mais amplo e abrangente do que
o que encontramos na sociedade ocidental, ou mais ampla do que o conceito de
homem? Entre muitos grupos indígenas que tem formação social a partir de clãs,
encontramos proibições e tabus alimentares, gente do clã do mutum (PAUXI TUBEROSA), por exemplo, não pode comer o mutum porque aqui o mutum, não está ligado ao sagrado religiosamente falando, mas
porque é uma pessoa. Dessa forma, em
uma possível hierarquia da existência, de imediato, os inumanos, neste
contexto, equivaleria aos animais. A leitura da cosmovisão yanomami da
reintegração do animal/homem a natureza, degeneração ética, opera um
deslocamento epistemológico, no conceito de homem. O duplo, heweriwë e hewe, opera não em termo de ‘homem’, entendido como biológico, ou
seja, um corpo metamorfoseado, mas em termo de pessoa. Nesta perspectiva
yanomami, a condição de pessoa não
está intrínseca ao homem. Por isso, que o inumanos, os animais aos olhos do
homem, podem ser uma pessoa, bem como o homem pode, ou não, a vir a ser uma
pessoa.
Para ampliar mais essa noção de pessoa observe esse trecho do Nativo Relativo de Viveiros de Castro (2002) onde faz um debate sobre sua crença nos conceitos indígenas, quando interrogado pela sua aluna sobre se acreditava no que os indígenas afirmavam, como, por exemplo, que os pecaris (porcos) são humano.
Para ampliar mais essa noção de pessoa observe esse trecho do Nativo Relativo de Viveiros de Castro (2002) onde faz um debate sobre sua crença nos conceitos indígenas, quando interrogado pela sua aluna sobre se acreditava no que os indígenas afirmavam, como, por exemplo, que os pecaris (porcos) são humano.
A estreiteza intelectual que
ronda a antropologia, em casos como esse, consiste na redução das noções de
pecari e de humano exclusivamente a variáveis independentes de uma proposição,
quando elas devem ser vistas — se queremos levar os índios a sério — como
variações inseparáveis de um conceito. Dizer que os pecaris são humanos, como
já observei, não é dizer algo apenas sobre os pecaris, como se ‘humano’ fosse
um predicado passivo e pacífico (por exemplo, o gênero em que se inclui a
espécie pecari); tampouco é dar uma simples definição verbal de ‘pecari’, do
tipo “‘surubim’ é (o nome de) um peixe”. Dizer que os pecaris são humanos é
dizer algo sobre os pecaris e sobre os humanos, é dizer algo sobre o que
pode ser o humano: se os pecaris têm a humanidade em potência, então os humanos
teriam, talvez, uma potência-pecari? Com efeito, se os pecaris podem ser
concebidos como humanos, então deve ser possível conceber os humanos como pecaris:
o que é ser humano, conseqüências disto? Que conceito se pode extrair de
um enunciado como “os pecaris são humanos”? Como transformar a concepção
expressa por uma proposição desse tipo em um conceito? Esta é a verdadeira
questão.[...Os pecaris são pecaris e humanos, são humanos
naquilo que os humanos não são pecaris; os pecaris implicam os humanos,
como ideia, em sua distância mesma diante dos humanos. Assim, quando se
diz que os pecaris são humanos, não é para identificá-los aos humanos, mas para
diferenciá-los de si mesmos — e a nós de nós mesmos.
Por
fim, a inversão antropológica realizada pelos yanomami abre espaço para um
debate muito atual, que é alteridade, o outro. Filósofos como Habermas, Martin
Bubber, Levinas e outros, procuraram entender o ser humanos dentro da
alteridade, do discurso, do diálogo, autores como Bruno Latour, Viveiros de
Castro, Roberto da Matta, Cardoso de Oliveira, Jacques Derrida questionam os
conceitos em que são fundados as nossas “crenças cientifica”.
Provavelmente
vocês sentiram falta de vários autores, da filosofia a antropologia, que
certamente enriqueceria o nosso artigo, mas a minha intenção não foi de
aprofundar e sim de demonstrar como o que pensam os yanomami em sua cosmovisão
que, aliás, é muito pertinente, principalmente quando olhamos do ponto de vista
histórico e nos perguntamos, onde estava a humanidade no extermínio em massa
dos judeus?
Na guerra do Vietnã e em muitos casos históricos de brutalidade contra o próprio ser humano?
Sempre seremos primitivos, literalmente, quando tentamos sermos civilizados, ou quando encontramos a nossa humanidade hierarquizada pela linha daquilo que consideramos inumanos aos nossos olhos...
A inversão antropológica realizada pelos yanomami em seus wãnopë nos causa certa inquietação, pois nos convida a sermos sujeitos éticos e lançar bases para se repensar o significado de ser humano...
Na guerra do Vietnã e em muitos casos históricos de brutalidade contra o próprio ser humano?
Sempre seremos primitivos, literalmente, quando tentamos sermos civilizados, ou quando encontramos a nossa humanidade hierarquizada pela linha daquilo que consideramos inumanos aos nossos olhos...
A inversão antropológica realizada pelos yanomami em seus wãnopë nos causa certa inquietação, pois nos convida a sermos sujeitos éticos e lançar bases para se repensar o significado de ser humano...
Notas
1- Os dados sobre Dawin e a evolução não são explorados de
forma prolixa cabendo ao leitor procurar pesquisar sobre os mesmo caso se ache
instigado.
2- Em relação ao barro, no artigo original eu aprofundo mais
a relação nominal dos termos e do sopro. Outras culturas também usam o termo
barro (terra/areia) e suas narrativas, mas com nomenclaturas distinta criando
um mosaico intrigantes de relação e “coincidência” incríveis.
3- Os dados aqui apresentados são das minhas anotações
durante o campo. Meu foco na pesquisa era o ethos yanomami e suas mitologias,
mas devido a gama de informação pude me deparar com outros temas importante
para a compressão da cosmovisão e cosmologia do povo yanomami.
4- A minha fluência e o bom domínio da língua yanomami me
ajudaram a compreender melhor os mitos e os costumes deste povo a essa acrescento
a participação dos rituais osteofágicos, dos cantos, das reuniões, das festas e
a inserção na vida cotidiana, onde fui bem acolhido.
5- Horonami é uma entidade criadora, mais precisamente
(entre algumas aldeia foi o primeiro “yanomami” que existiu), mas não
equivalente a Deus, porque ele começou a existir junto com tudo o que já
existia, ele não é anterior ou posterior natureza.
6- O texto aqui você pode encontrar em português e yanomami
na integra minha dissertação de mestrado que está acessível aqui mesmo no blog.
7- Como disse Sr. Tiago, exi kë të napëpë? Exi kë të yaropë? Exi kë të yanomami? Kamiyë
pëmakini ai të wã hai pëma taaimi kunoha (trad: o que é ser branco? O que é ser
animal? O que é ser yanomami? Se não deixamos o outro falar?)
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