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COMUNIDADES DE FALA E CONTEXTOS DE USO SOCIAL DA LÍNGUA

Anauê, xe iru guê!

Visitando nosso blog, um colega da academia de Antropologia Social da UFAM desejou compartilhar suas reflexões antropológicas aqui no nosso espaço. Fiquei feliz por ceder o espaço e pela partilha. O texto trata de uma reflexão que nosso amigo faz e que está no escopo do desenvolvimento da sua dissertação que em breve estará defendendo.
Ele deixou ao meu critério a supressão de algumas partes, mas, meu Deus, quem sou eu para cometer tamanha injustiça a um texto tão interessante!
Entretanto, como era muito extenso para o nosso espaço, resolvi dividi-los em partes. Assim vocês terão a oportunidade de degustar melhor o texto e se deleitar com o esforço intelectual do nosso amigo.

Desejo a todos uma boa leitura!


 

PARTE I

COMUNIDADES DE FALA E CONTEXTOS DE USO SOCIAL DA LÍNGUA

Aquiles Santos Pinheiro
Mestrando do Programa de Pós-Graduação
em Antropologia Social da UFAM.

Resumo: O presente texto trata de uma problemática que cerca a própria definição do locus da pesquisa nas áreas de sociolinguística e etnolinguística, a saber, como definir uma “comunidade de fala?” E mais ainda, como delimitar o contexto social e os seus limites físicos? Esta questão é relevante porque a descrição das línguas em sua diversidade funcional e social depende principalmente da analise e interpretação de dados obtidos em “situações concretas de fala”, o que obriga o pesquisador a demarcar com certo grau de precisão as fronteiras físicas e sociais da comunidade, bem como de suas variedades linguísticas. Portanto, a questão se resume em determinar os critérios que o pesquisador irá utilizar para delimitar social e geograficamente o locus da pesquisa. Além disso, é preciso definir o conceito de comunidade que melhor se ajuste aos propósitos da pesquisa, uma vez que não há consenso, nem mesmo entre os linguístas, acerca da definição de comunidade. Não menos importante, é saber que “tipo de fala” será escolhido para ser alvo da investigação: o discurso do indivíduo, tomado isoladamente ou as características de um determinado grupo social? A resposta a estas questões tem implicações na escolha do método e da técnica de pesquisa, bem como na escolha do aporte teórico mais adequado. Em busca de uma definição que me permita um grau razoável de precisão na demarcação dos limites físicos e sociais das comunidades que pretendo pesquisar, resolvi utilizar os conceitos de campo e habitus de Pierre Bourdieu (2008; 1997; 1985;). Desenvolvendo este ponto de vista, me arrisco a dizer que uma comunidade de fala é constituída de “campos”, onde os agentes (falantes) se constituem e são constituídos pelo “campo”, assumindo posições de poder na medida em que adquirem – por meio do habitus – o domínio técnico de formas prestigiosas de falar e, por consequência, conseguem acessar os valores circulantes no campo – prestígio, autoridade e capital simbólico –, tudo isso acontecendo dentro de um processo histórico particular – sincrônico. O texto que ora se apresenta, é fruto deste exercício, isto é, o de se pensar uma comunidade de fala como uma conjunção de campos em permanente interação sociocomunicativa, independentemente de sua base social, étnica ou geográfica.

Palavras-chave: Comunidade de Fala; Campo; Habitus; Sociolinguística; Etnolinguística.

1.Introdução

O tema escolhido se refere a algumas questões suscitadas no meu projeto de dissertação e a tentativa de resolvê-las. Tais questões são complexas e tem a ver direta e indiretamente com a relação Língua/Cultura, ou seja, no intercruzamento de fatos sociais e/ou antropológicos e de fatos “puramente” linguísticos.

Inicialmente, são apresentadas algumas das dificuldades com que se defronta o pesquisador seja na área de Sociolinguística seja na de Etnolinguística – se é que faz algum sentido fazer tal distinção. Uma dessas dificuldades, diz respeito à delimitação do campo de observação empírica nas pesquisas em comunidades de fala em regiões de diversidade etnolinguística ou em sociedades bi e multilíngues.

Após uma discussão acerca das dificuldades de se estabelecer os limites geográficos e sociais de uma comunidade de fala e da falta de consenso entre os linguístas sobre os critérios de sua demarcação, apresento, a partir da leitura de Monteiro (2008), uma série de definições e propostas de “definições alternativas” de diversos autores, numa tentativa de alcançar os limites teórico-metodológicos e empíricos do conceito de comunidade.

Discutirei, ainda que de forma rasteira, com base em Thiolent (1984), as implicações destas questões na escolha do método e da técnica mais adequados à realização de uma pesquisa sociolinguística ou etnolinguística em regiões de grande diversidade linguística ou em sociedade bilíngues e multilíngues. Dada a falta de unanimidade entre os linguístas quanto aos critérios de demarcação dos limites geográficos e sociais do que vem a ser comunidade, resolvi utilizar os conceitos de “campo” e “habitus” de Pierre Bourdieu apresentados – num viés linguístico – por Hanks (2008), para tentar estabelecer os limites físicos e sociais das comunidades que pretendo estudar.

Desenvolvendo esse ponto de vista, me arrisco a dizer que uma comunidade de fala é constituída de “campos” onde os agentes (falantes) se constituem e são constituídos pelo campo, na medida em que acessam os “valores” (prestígio, reconhecimento e autoridade) circulantes no campo. Para tanto os agentes falantes devem ter o domínio (por meio do habitus) de certos “falares” ou tipos de falas e discursos (ideologicamente fundamentados) que os legitimam como os “portadores da fala autorizada”, isto é, porta-vozes dos grupos a que pertencem. Resumindo, o campo tem uma função formativa, isto é, de colocar os agentes em posições de poder dentro do respectivo campo onde atuam (cf. BOURDIEU: [1930] 2002; 101).

O texto é apresentado em uma única seção com várias subseções ou subtópicos, onde desenvolvo uma argumentação que sugere a idéia de comunidade como uma conjunção de campos em permanente interação sociocomunicativa, independentemente de sua base social, étnica ou geográfica. Neste “modelo”, a língua-padrão e as variedades linguísticas se constituem em elementos que são apropriados e utilizados pelos agentes falantes em competição por posições de poder dentro do campo.

2.Dificuldades inerentes a pesquisas nas áreas de Sociolinguística e Etnolinguística

De acordo com Monteiro (2008), a primeira grande dificuldade a ser superada pelos pesquisadores na área de sociolinguística e etnolinguística é apreender o alcance do conceito de comunidade. Isto porque, até mesmo entre os linguístas, não há consenso ou unanimidade quanto aos critérios e/ou parâmetros de demarcação dos limites geográficos e sociais de uma comunidade, os quais nem sempre são coincidentes. As definições apresentadas pelos diversos autores que tratam deste assunto, ou são amplas demais ou muito pouco precisas, dificultando ainda mais a separação dos conceitos. Resumindo, não se consegue estabelecer um acordo entre os linguístas e áreas afins sobre o que de fato constitui uma comunidade (cf. MONTEIRO; 2008).

Mas, quais são, na prática, as implicações desta problemática para os pesquisadores nas áreas de sociolinguística e etnolinguística? Considerando que, uma das tarefas destas áreas é descrever as línguas em sua diversidade funcional e social e que esse intento só pode ser conseguido por meio de dados (empíricos) obtidos nas “situações concretas de fala”, isto é, em contextos específicos em que a fala ocorre, o pesquisador deverá necessariamente demarcar os limites territoriais e sociais da comunidade que ele pretende estudar. Em outras palavras, a primeira tarefa do pesquisador é circunscrever a comunidade de fala dentro de um contexto social determinado e ao qual correspondam limites geográficos bem definidos (cf. MONTEIRO; 2008).

Outro ponto não menos importante a ser levado em conta pelo pesquisador, e que também representa um obstáculo a ser superado é: que tipo de fala se deve analisar? O discurso do indivíduo tomado isoladamente ou as características de um determinado grupo social? Com efeito, há duas maneiras de se tentar ultrapassar este obstáculo. Um, é o uso de “modelos abstratos”, formulados a partir da aplicação de conceitos no campo da Linguística ou mais especificamente, da Sociolinguística – termo preferido por Labov.

“No modelo laboviano, a opção de pesquisa tem sido, não sem inúmeras criticas, a análise de grupos de indivíduos, observando-se os aspectos sociais que interferem em sua fala, pois de acordo com Labov (1984, p. 256), o vernáculo é propriedade de um grupo, não de um indivíduo sozinho. Assim sendo, a preocupação básica do pesquisador deve ser de descrever uma variedade lingüística” (MONTEIRO, 2008, p. 39).

A outra maneira é considerar o indivíduo falante nas diversas “situações concretas de fala”, ou seja, em contextos específicos de comunicação e interação social. E neste ponto, me parece que esbarramos numa questão metodológica, ou melhor, na escolha do método e da técnica de pesquisa mais adequados. No primeiro caso, isto é, no uso de modelos abstratos – considerando a linha convencional de pesquisa – os pesquisadores tendem a valorizar as formas de raciocínio e argumentação. Ou seja, o desenvolvimento da argumentação baseia-se numa estrutura de raciocínio onde se valorizam as regras lógico-formais e critérios estatísticos com graus variados de representatividade, mas que, na prática, nem sempre são respeitados (cf. THIOLENT; [1984] 1989).

Já no segundo caso, isto é, na observação e análise dos “atos de fala”, seja a fala individual ou coletiva nas “situações concretas de fala”, dependendo dos objetivos da pesquisa, isto só pode ser viabilizado por meio do trabalho de campo, onde se poderá utilizar a Pesquisa Participante com aplicação da técnica da Observação Participante ou Pesquisa-Ação. Entretanto, isto não exclui a possibilidade da utilização, paralela, de outros métodos e técnicas de pesquisa. Neste ponto, me parece oportuno, ao nível de definição, fazer uma distinção entre estas duas modalidades de pesquisa.

Nesse sentido, conforme se lê em Thiolent ([1984] 1989, p. 16), a pesquisa-ação é um tipo de pesquisa social com base empírica que é concebida e realizada em estreita associação com uma ação ou com a resolução de um problema coletivo e no qual os pesquisadores e participantes representativos da situação ou do problema estão envolvidos de modo cooperativo ou participativo. Desse ponto de vista, pode-se dizer que toda pesquisa-ação é um tipo participativo, ou seja, a participação das pessoas implicadas nos problemas investigados é absolutamente necessária.

Enquanto que a pesquisa participante é, segundo Thiolent ([1984] 1989, p. 17), em alguns casos, um tipo de pesquisa baseada numa metodologia de observação participante na qual os pesquisadores estabelecem relações comunicativas com pessoas ou grupos da situação investigada com o intuito de serem bem aceitos pelos pesquisados. Nesse caso, a participação deve incluir, sobretudo a participação dos pesquisadores e consiste em “aparente identificação com os valores e com os comportamentos que são necessários para a sua aceitação pelo grupo considerado”.

Contudo, à margem de questões metodológicas, permanece a questão inicial: Onde ou como se delimitam as fronteiras de uma variedade linguística? e Que tipo de fala devo analisar? A meu ver, a resposta a estas questões depende, em grande parte, dos objetivos pretendidos e das metas traçadas pelo pesquisador. No meu caso, em particular, me interessa, principalmente a fala pública bem como o discurso em determinados contextos sociais. No entanto, estarei inclinado analisar a fala individual se eu julgar que ela possa ser elucidativa de alguns aspectos (pertinentes aos objetivos da pesquisa) que eventualmente não fiquem claros na fala pública.

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