Pular para o conteúdo principal

(Re)Descobrindo o Poromongûetá: Uma Nova Perspectiva Linguística Para O Povo Tremembé.

 Anauê xe iru gûê!

Voltei depois um ano sem postar...tempos difíceis.. muitas e doloridas perdas...

Neste primeiro post de 2021 do nosso blog, venho tratar de um assunto que a tempo venho pincelando neste espaço de comunicação e interação: O Poromonguetá, a língua dos Tremembé.



Na segunda semana de dezembro de 2019, eu participei da VI Reunião Equatorial de Antropologia, um evento de grande porte na área de antropologia, foi em Salvador, na Bahia. Foram momentos impactantes na minha vida, tanto no aspecto indígena, como na minha vida de antropólogo. Debates importantes e salutar sobre a etnologia produzida no Norte e, principalmente, do Nordeste. Conheci pessoalmente gente que considero importante na minha formação, pois li as suas produções antropológicas e tive a oportunidade de apertar a mão e trocar uma ideias, de partilhar um pouco sobre minha trajetória de vida e da construção da minha identidade indígena. Mas, de tantos momentos importantes, sem poder equiparar o peso, senti-me pessoalmente tocado na fala do Prof. Dr. José Glebson (UFRN) e do Prof. Dr. Tromboni  (UFBA). Prof. Glebson abordou sobre uma realidade interessante sobre os Potyguara do Rio Grande do Norte, onde o coletivo resolveu retomar a língua, o  Tupi Antigo, e implantá-la a partir da escola, como epicentro do movimento de resgate, e discorreu em seguida do posicionamento de um artigo em que linguistas avaliaram a implantação da língua tupi antigo como uma atividade sem retorno, cujo objetivo não foi alcançado, uma vez que se passado alguns anos não houve nenhum “progresso” esperado pela empreitada. A fala de Glebson foi incisiva e cirúrgica: a antropologia possui um olhar próprio, distinto da linguística, nossos marcadores não são normativos mas relacional e se os potyguara se relacionam com o tupi mesmo sem falar, já ai em si um objetivo mais do que alcançado. Essa postura remete a fala do Prof. Marcos Tromboni, não importa se os potyguara fala ou não o tupi depois de dois anos do curso da língua tupi, o que importa é que eles se apropriaram do tupi e fizeram dessa apropriação uma reconfiguração do que é ser potyguara. É a partir dessas duas falas que surge o contexto deste post.

Conferência de Abertura da 6ª Reunião Equatorial de Antropologia

Escutar a fala dos professores na VI REA me impactou profundamente. E fez dar um passo mais a frente que a tempo venho evitando, mas que de alguma forma, através do meu blog, venho preparando o solo para tal empreitada, ou seja, iniciar a implantação do Poromonguetá nas nossas realidades Tremembé. O receio de falar sobre o Poromonguetá tem o seguinte contexto:  como tanto tempo que se passou e nunca ninguém ouviu falar dessa língua? Esse Poromonguetá existe mesmo? E como ninguém conhece? Não existe nenhum registro histórico sobre essa língua e de repente aparece, como assim? Os questionamentos só se multiplicam. De fato, quando falamos do povo Tremembé precisamos tomar consciência de que existem realidades bastante distintas entre nós. Existem os Tremembé politicamente organizado, com terras (principalmente no Ceará) reconhecidas pela FUNAI, existem Tremembé que estão se organizando em grupos como é o caso das comunidades Tremembé do Maranhão e tem ainda os Tremembé, cujo fronteira étnica é a própria família (que é o meu caso), ou seja, famílias Tremembé que vivem em cidades e centros urbanos sem nenhuma distinção dos brancos, mas que internamente possui traços históricos, consanguinidades e culturais que marcam a dimensão diacrítica de pertença ao povo Tremembé.

Não precisamos usar cocar, nem viver em uma aldeia ou mesmo praticar nossos rituais indígenas (este último seria interessante), não precisamos de reconhecimento da FUNAI, nem de outro órgão indigenista e nem de aval de antropólogos para ratificar a nossa condição indígena, porque o que somos e, se nos reconhecemos como Tremembé, é porque já somos de fato um Tremembé. No Ceará, Piauí e no Maranhão existe muitas famílias que são Tremembé e que, pela condição (de já estarem integradas a sociedade nacional) não revogam para si mesmo a luta pela identidade e pelo reconhecimento étnico, mas caminham praticando os nossos costumes, formas de alimentação e crenças. Cada uma das condições citadas possuem elementos culturais distintos mas que é um todo e ainda há muito da nossa cultura a emergir. Nas comunidades Tremembé do Ceará se canta o Torém com resquícios das letras da antiga língua do nosso povo (no caso o Poromongûetá), em outras os cantos do Torém são apenas em português (e eu estou compondo em poromongûetá). Em alguns lugares, os pajés e rezadores trabalham com mesas, outro lugares sem mesa e em outros casos, nem sabem o que é mesa....Alguns Tremembé utilizam rezas de curas com evocação dos santos católicos e encantados, Tremembé de outras regiões não tem nenhum evocação de santos ou com um acentuação mínima com a dimensão cristã. Em algumas comunidades se tomam o mocororó, outras não. Alguns Tremembé tem uma ligação forte com o mar e vivem somente da pesca, outros são praticantes da agricultura, e por fim, alguns possui elementos  que estão no seio da família e que outros das demais regiões não tem conhecimento que esses elementos se quer existissem, como é o caso do Poromongûetá. Mas no final, somos um único corpo ligados a ancestralidade! Não existe um tremembé mais autêntico do que outro, existe formas diferentes de manifestações tremembémicas! Somos e pronto.

Dai percebemos como é complexa a nossa cultura Tremembé. Estamos em muitos lugares do nordeste e em várias formas de existências, comunidades, aldeias, cidades e núcleo familiar. Cada uma dessas formas possui alguma coisa para somar ao nosso patrimônio cultural e fortalecer a nossa identidade do povo Tremembé. Deste que comecei em 2009 a publicar material referente aos Tremembé em meu blog venho tendo feedback de varias regiões, principalmente do Piauí e do Maranhão, pessoas que se identificam como Tremembé sem entretanto pertencer a um coletivo fechado. Isso é interessante porque se você se reconhece como Tremembé, se você sabe da sua origem Tremembé, se sabe que na veia corre sangue Tremembé, mesmo que seja de uma tatataravó e se você se auto afirma como um indígena Tremembé, você é um Tremembé.

Voltando ao receio. Como alguém de repente aparece dizendo que existe uma língua que é nossa? Se somos deveras desacreditados por sermos índios do nordeste, se eu sou deveras desacreditado por não pertencer a um coletivo politicamente organizado, como poderei falar de uma língua indígena chamada de Poromongûetá? Foram essas condições que me forçaram de bom grado a manter o conhecimento do Poromongûetá somente para mim e repassar para os meus filhos futuramente. Comecei a trabalhar o Poromongûetá no último ano do ensino médio, mas já sabia dele a mais tempo. Mas a maturidade de perceber a raridade do que eu tinha em mãos aconteceu quando já estava no ultimo ano do ensino superior e as perdas familiares dos troncos velhos da família já eram irreparáveis. A tristeza de não ter sentado com meus bisavós (e agora com meus avós) para falar do que conheciam e do que viveram é profunda.

Então a pergunta é: pra que aprender essa língua? Qual a finalidade de se aprender essa língua? 

Faço minhas as palavras do prof. Glebson, se reapropriar de uma língua nossa é retomar aspectos de uma nova cosmovisão, uma nova forma de olhar o mundo. De reforçar a nossa identidade única e sólida. Ampliar nosso aparato cultural tremembé, juntar força para dar ênfase a nossa luta de cada dia e fortalecer a dimensão sociopolítica que uma língua, como a nossa, pode contribuir. E simplesmente pelo prazer de falar uma língua que foi outrora falada por nós e que nomeou o litoral e o boa parte do sertão cearense! 

Mas, acredito que estamos no caminho certo. Ampliando os contatos com os parentes Tremembé do Maranhão (principalmente da Rosa Tremembé, liderança Tremembé de Raposa) e com a ajuda dos karaíwa, poderemos ampliar mais ainda o alcance da nossa língua. Mirando esse objetivo é que venho me dedicando a produzir material na nossa língua, dos quais já estão quase concluídos, uma vez que carece de material para o exercício e a aprendizagem:

Introdução ao Poromongûetá: A língua dos Tremembé (gramática básica)



Eîore: kurumietá ogûatá ïpï.(livrinho com leituras básica e introdutórias em poromogûetá, quase finalizado).




Emiminõ: guarani Tremembé Gûatásawa. (HQ para os kurumigûasú, em construção)


Îandé Îaye'eng Poromongûeta. (uma cartilha com o alfabeto em nossa língua, ainda em construção) 


enfim, são projetos pessoais pequenos (pensado para ensinar meus kurumins, rsrsr), e que mesmo sem financiamento de qualquer instituição, espero em breve disponibilizar e fazer circular entre os meus parentes Tremembé. Esperando que ajude a divulgar a nossa língua e o aprendizado da nossa língua nas nossas escolas.


Um grande abraço!


Tereiko porang!!


Links sobre o Poromongûetá:

http://xembae.blogspot.com/2010/12/poromongueta-lingua-dos-tremembe.html

https://xembae.blogspot.com/2019/08/poromongueta-trajetoria-da-lingua-do.html

https://www.facebook.com/groups/250042238373071/permalink/1165713093472643/

Comentários

  1. Kwema yandé 🌱🌾🍀 blog katu! Tremembé katu!
    Ixé a Bruna Guaraiúba neteroya kûa suí. Xe r-ugúy I tupinambá potygar. Asé kotiara poromongûetá. Ende ere kotiara poromongûetá kunhã supé?

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Eneko'ema, Bruna!
      Xe rorïweté ndé ri! rsrsrs
      poromongûetá "kunhã" oré oroỹe’eng "kuỹa", "kotiara" awé oroỹe’eng Kûatiara. rsrsrsr
      kûe katu reté!

      Excluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

A diferença entre “não posso” e “não quero”.

A diferença entre “não posso” e “não quero”. Gostaria de partilhar aqui uma reflexão filosófica apoiada na linguagem que, em primeiro momento, parece uma bobagem, mas que pode revelar muito da dimensão inconsciente (se de médico e de louco todo mundo tem um pouco, de psicólogo então, nem se fala!) do ser humano na esfera da inter-relação com o outro: a diferença substancial entre o não posso e o não quero . Esta reflexão nasceu de uma curiosidade sobre o uso da linguagem durante as leituras de Habermas, Austin, Lyons e outros lingüistas e filósofos da linguagem. A princípio, ambas as respostas para uma dada circunstância parece ecoar definitivamente como a não possibilidade da realização do fato em questão. Ora, se durante uma visita a um amigo, por exemplo, me convidasse para tomar uma xícara de café e eu respondesse “não posso, obrigado!” ou “não quero, obrigado!”, ambas as respostas, marcaria a negação do ato convidativo a ser realizado. Ou em outro contexto, se minha mãe c

ESTÉTICA E CORPORALIDADE ENTRE OS YANOMAMI

ESTÉTICA E CORPORALIDADE ENTRE OS YANOMAMI DO RIO MARAUIÁ Sabem por que eu adoro antropologia? Porque não é apenas uma ciência, mas, simplesmente porque ela abre a cortina para um mundo totalmente diferente e nós, antropólogos, imbuído nestes mundos como peregrinos, nunca seremos totalmente o outro que está ali a nossa frente e, o pior, nunca voltaremos a sermos o que éramos antes da imersão.  Lembro que tinha uma anseio tão grande em aprender a língua yanomami que nos primeiros meses de campo cheguei a sonhar, literalmente, em yanomami. Acreditava, e acredito criticamente, na utopia malinowkiana da imersão na cultura do outro e foi o que tentei fazer através da língua (também cantei, dancei e participei dos rituais mais profundos[1] que uma pessoa “estranha” poderia participar). A cultura do povo Yanomami é singular, como são singulares as mais diversas culturas entre si. Porém, há tantos elementos sui generi que sempre que volto a convivência com os yanomami me espanto co

POROMONGUETÁ: A LÍNGUA DOS TREMEMBÉ.

POROMONGUETÁ: A LÍNGUA DOS TREMEMBÉ. olha ai a gente de novo! Prontos para mais uma leitura? Até agora postei sobre vários assuntos, mas ainda não abordei aspecto da cultura do meu próprio povo, do Povo Tremembé. Entre os vários elementos que poderia abordar, de forma mais peculiar, da parte cultural e estrutura social, eu irei me ater ao que toca a dimensão lingüística. Gostaria de partilhar junto com esta postagem um sentimento particular. Acredito que eu seja o primeiro a falar do Poromonguetá. Embora eu seja antropólogo, tive uma boa formação na área da lingüística devido a convivência e as partilhas com meu orientador do mestrado Frantomé B. Pacheco que é um excelente lingüístico. Por possuir, hoje, um conhecimento lingüístico suficiente para organizar nossa língua e apresentá-la de forma mais geral. Até então, ainda esses dados permaneciam na obscuridade, pois, de alguma forma, eu tinha um pouco de receio de comentar sobre eles. Ora, nós indígenas do nordeste, já somos, dev