Pular para o conteúdo principal

COSMOVISÃO TREMEMBÉ: RESGATANDO MITOLOGIA E DEUSES DA CULTURA TREMEMBÉ


MITO E DEUSES ENTRE OS TREMEMBÉ

Esta postagem não é uma reflexão antropológica sobre religião na cultura indígena Tremembé, nem é um resgate sobre a nossa cosmovisão e nem tem pretensão de representar a nossa visão mitológica das entidades que habitam o mundo. Na verdade, é uma exposição de uma espécie de arqueologia da narrativa Tremembé, contados nas "histórias de dormir". E se resgatar os personagens dessas histórias de dormir equivale a um resgate da mitologia, então esse post passa a ser um resgate da nosa mitologia. Quando nos remetemos as cosmovisão e a mitologia, temos uma via de mão dupla: a cosmovisão contemporânea da vida Tremembé[1] de um lado e a do outro perda mitológica do panteão das entidades míticas. Infelizmente, perdemos a nossa mitologia (referente aos mitos de criação), imergida e esvanecida nas dobras do tempo. Perdemos o contato com muitas das nossas entidades e seres fantásticos, salve os encantados que ainda resistem na cosmovisão dos rezadores e faz parte profundamente do nosso cotidiano e do nosso modo de ser Tremembé. Em um processo de aculturação tupínica passamos a incorporar e a partilhar algumas entidades do universo tupi. Seres renomeados, seres aparentados, seres adaptados e, por fim, seres res-significados. O que nós Tremembé chamamos “aquele do trovão/ encantado do trovão”, no tupi chamado de Senhor do trovão, Tupã, virou o Deus do trovão e, por fim, o Deus cristão. No imaginário popular Tupã é o maior de todos os deuses indígenas, mas na verdade, ele é apenas mais um entre as muitas entidades poderosas da cosmologia indígena ligada ao povo falante do tronco tupi e a nossa do Povo Tremembé. Não esqueçam que estamos fazendo um corte bem especifico aqui “os falantes do tronco tupi”, pois cada povo indígena possui as suas divindades, seres fantásticos e entidades criadoras.
Tradicionalmente perdemos muitos elementos e incorporamos outros, com as alianças (holandesas, espanhóis, portuguesas e com outros grupos indígenas) acabamos por deixar de praticar alguns costumes. Entre eles, a construção do Îï, o machado de pedra em forma de âncora, lapidado e amolado antes das batalhas, a luz tênue de Îasï e aos cantos do Torém, realizado pelas mulheres e algumas crianças. Temos também a lenda do Mokororo [2], que é a bebida que tomamos durante o Torém.
Vamos passar para o nossos deuses e entidades que um dia fez parte do nosso arcabouço cultural e da nossa visão de mundo. Hoje algumas entidades ainda aparecem nos cantos do torém, com um pouco de alteração na escrita. Segue os nomes [3]:

Ywïtu Remui, deus dos ventos, era muito importante o seu culto porque somos uma Nação do Mar, a tradição da pesca e toda a nossa sabedoria a ela ligada, auxiliava-nos a ir para o mar aberto e voltar com segurança. Ywïtu Remui, é ele, que leva as canoas e as jangadas, mesmo quando navegávamos sem vela, traziam de volta, quando queria...

Urutawa, conhecida pelos tupinambás como Rudá, deusa do amor;

Tupã, deus do raio e do trovão, muito temido pelo estrondo no céu e pelo clarão, mas nós Tremembé já estamos acostumado ao seu rugido...


Tupã Tremembé

Sumé, entidade misteriosa, não é um deus, mas possui um poder sobrenatural sobre as plantas e sobre ser cultivo. Os portugueses associaram ao apostolo de Cristo, São Tomé. é mais conhecido entre os tupinambás;

Mïkura, entidade espectral e metamorfo. Está sempre espreitando a gente, quer seja no mar, na praia ou no mato (e até dentro de casa). Sabe aquela sensação de estar sendo olhado e você se vira e não ver ninguém? É o Mïkura.

Mitã, Entidade protetor das crianças, na religião cristã associaram-no ao anjo-da-guarda.

Mba’etatá, deus dos mortos, guarda o fogo (calor) que está ligado a vida em nossos corpos;

E’õ, deus da morte, homem robusto, alto. Cabelos longos e com o corpo coberto de penas de anum (sp crotophaga ani), da cabeça aos pés, o que deixa uma visão terrível;

Umagûari, espirito nefasto;

Ïpupiara, deus antropomórfico marinho que habita rios salobres que desemboca no mar (como o Coreaú);

Temoti, espirito nefasto;

Tagûaíwa, espécie de duende miniaturizada camuflado com penas que esconde as coisas a nossa vista; sabe quando você está fazendo alguma coisa, como uma conta ou escrevendo ou anotando, ai você deixa a caneta ou o lápis e quando você procura o perder por algum tempo é tagûaíwa. Agulha de rede de pesca, facão na roça, chave de cadeado...então!

Maraguigûara, espirito mensageiro que anuncia a morte;

Maraúna, espirito da noite e da escuridão;

Mani, deusa do bem. Entidade bem lembrado nas letras do torém, ela nos deu a mandioca como alimento.

Karuana, espirito da saúde auxilia os rezadores Tremembé;

Kaaguâra, espirito ruim que habita as margens dos manguezais. também é conhecido como guajara tem a capacidade de se metamorfosear tanto em gente como em animais.

Mba’eapina, deus antropomórfico marinho que governa o mar aberto;

Amamirasï, deusa do relâmpago irmã de Tupã;

Aragûïrá, pássaro da luz, com penas chamejantes e crista dourada, que se transforma em gente; antigamente, quando tinha eclipse solar, Aragüirá fazia o sol retornar ou ele mesmo transformava-se em sol e iluminava toda a região do ceará, enquanto em outros lugares permanecia na escuridão, dai que chamavam a região de oré ïwï ïwï ara po’õ Aragûïrá ri (em poromonguetá nossa terra é terra da luz por causa do Pássaro da Luz!)

Awasaí, deus gigante, possuidor de corpos e transmutador, o pior e o mais maléfico de todos citados acima. Ele é muito conhecido pelo o que chamamos no ceará de encosto.
Awasaí

Por fim,

amandu Mir, entidade de poder absoluto, ao mesmo tempo que é, ele não é. Ele criou praticamente tudo o que conhecemos na natureza, plantas e animais, inclusive o homem, como também outros deuses, sua morada é o sol de onde vem seu poder. Ele é a energia de tudo o que existe. Os Guarani também possuem Nhamandú que é uma categoria que defini os deuses guarani. Nhamandu (Nhanderuvuçu) pode ser um deus ou denominar um, Tupã é um nhamandú.


Yamandú Mirim


Estes deuses da nossa cosmovisão são pouco ou totalmente desconhecidos, até mesmo entre os Tremembé. É uma tradição oral que praticamente sumiu e que provavelmente não voltará (espero que eu esteja errado). O que não é conhecido tende a ser esquecido. É preciso recriar as nossas histórias[4] (até mesmo reinventá-la ou inventa-las, não para os outros, mas para nós mesmos). Somos autores da nossa própria história, retomamos a nossa identidade, retomamos o Torém, não como uma prática folclórica, mas como uma prática da nossa identidade. Lutamos por nosso território e por nossos costumes... não somos descendentes, não somos ressurgentes, não somos emergentes, somos Tremembé e se você se reconhece como Tremembé e se você é um Tremembé, sempre será um Tremembé, seus filhos e filhas serão Tremembé. Embora eu não esteja na minha terra natal, embora minha terra natal não seja nenhuma TI Tremembé, embora eu não tenha acompanhado as lutas pelo nosso direto a terra, embora os mais velhos já estejam deixando esse mundo e levando consigo um mundo Tremembé totalmente desconhecido...vou arriscando. Enquanto indígena, sinto muito em saber que muitos saberes e conhecimentos estão se acabando fora das terras indígenas tremembé. Se eu sei um pouco é porque procurei escutar, porque gostava de ouvir as histórias dos mais velhos (que foram trocados por várias razões, estudos, turismos, emprego em outras cidades e até estados, falta de conhecimento...). E meu blog é esse veículo de comunicação, acessível a todos, aos que creem e aos céticos, esperando que um dia possa contribuir para e com os meus parentes tremembé 'de dentro', como os de "fora", que estão lutando pela nossa unidade politica, social e cultural.


[1] essa cosmovisão a que me refiro é a que adquiri da minha família, portanto uma visão parcial e minúscula de uma tradição familiar, catando fragmentos aqui e ali, nas "histórias de dormir", e  que, portanto, não representa como um todo, enquanto nação Tremembé na categoria de povo ou de coletividade.
[2] próximo post.
[3] grafia do poromonguetá, ï é uma vogal média (um ‘i’ gutural), o ‘w’ tem som de b, mas é fricativo, isto é, os lábios não se tocam (como o b do português que é bilabial) quando se pronuncia, por isso, fica parecendo com o som de v.
[4] os seres citados aqui no blog poderão ser encontrados na mais diversa literatura histórica e de cunho antropológico[viajantes, missionários, etnógrafos, etc]. Mas, raramente ligado a nós Tremembé, porque fomos historicamente invisibilizados pelos contextos da época (ver o poste sobre a trajetória do poromonguetá, ainda em desenvolvimento).

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

A diferença entre “não posso” e “não quero”.

A diferença entre “não posso” e “não quero”. Gostaria de partilhar aqui uma reflexão filosófica apoiada na linguagem que, em primeiro momento, parece uma bobagem, mas que pode revelar muito da dimensão inconsciente (se de médico e de louco todo mundo tem um pouco, de psicólogo então, nem se fala!) do ser humano na esfera da inter-relação com o outro: a diferença substancial entre o não posso e o não quero . Esta reflexão nasceu de uma curiosidade sobre o uso da linguagem durante as leituras de Habermas, Austin, Lyons e outros lingüistas e filósofos da linguagem. A princípio, ambas as respostas para uma dada circunstância parece ecoar definitivamente como a não possibilidade da realização do fato em questão. Ora, se durante uma visita a um amigo, por exemplo, me convidasse para tomar uma xícara de café e eu respondesse “não posso, obrigado!” ou “não quero, obrigado!”, ambas as respostas, marcaria a negação do ato convidativo a ser realizado. Ou em outro contexto, se minha mãe c

ESTÉTICA E CORPORALIDADE ENTRE OS YANOMAMI

ESTÉTICA E CORPORALIDADE ENTRE OS YANOMAMI DO RIO MARAUIÁ Sabem por que eu adoro antropologia? Porque não é apenas uma ciência, mas, simplesmente porque ela abre a cortina para um mundo totalmente diferente e nós, antropólogos, imbuído nestes mundos como peregrinos, nunca seremos totalmente o outro que está ali a nossa frente e, o pior, nunca voltaremos a sermos o que éramos antes da imersão.  Lembro que tinha uma anseio tão grande em aprender a língua yanomami que nos primeiros meses de campo cheguei a sonhar, literalmente, em yanomami. Acreditava, e acredito criticamente, na utopia malinowkiana da imersão na cultura do outro e foi o que tentei fazer através da língua (também cantei, dancei e participei dos rituais mais profundos[1] que uma pessoa “estranha” poderia participar). A cultura do povo Yanomami é singular, como são singulares as mais diversas culturas entre si. Porém, há tantos elementos sui generi que sempre que volto a convivência com os yanomami me espanto co

POROMONGUETÁ: A LÍNGUA DOS TREMEMBÉ.

POROMONGUETÁ: A LÍNGUA DOS TREMEMBÉ. olha ai a gente de novo! Prontos para mais uma leitura? Até agora postei sobre vários assuntos, mas ainda não abordei aspecto da cultura do meu próprio povo, do Povo Tremembé. Entre os vários elementos que poderia abordar, de forma mais peculiar, da parte cultural e estrutura social, eu irei me ater ao que toca a dimensão lingüística. Gostaria de partilhar junto com esta postagem um sentimento particular. Acredito que eu seja o primeiro a falar do Poromonguetá. Embora eu seja antropólogo, tive uma boa formação na área da lingüística devido a convivência e as partilhas com meu orientador do mestrado Frantomé B. Pacheco que é um excelente lingüístico. Por possuir, hoje, um conhecimento lingüístico suficiente para organizar nossa língua e apresentá-la de forma mais geral. Até então, ainda esses dados permaneciam na obscuridade, pois, de alguma forma, eu tinha um pouco de receio de comentar sobre eles. Ora, nós indígenas do nordeste, já somos, dev