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5 LENDAS REAIS DA AMAZÔNIA QUE POUCOS CONHECEM



Anauê xé iru guê!


Vou compartilhar nesta postagem 5 lendas (reais) do Estado do Amazonas que poucas pessoas conhecem. No imaginário popular e nas crenças hodiernas interiorana do estado do Amazonas, como bem entre os grupos indígenas, há relatos de seres que fazem parte do nosso patrimônio imaterial, que diversifica ainda mais o nosso mosaico cultural e que poucas pessoas conhecem. Quando nos remetemos as lendas e a “mitos” normalmente o que vem a nossa mente são aqueles seres “top”, ou seja, iara, curupira, boitatá, cobra-grande e etc. entretanto, no meu exercício antropológico conheci outros seres incríveis (aterrorizantes na verdade) que estão, sim estão literalmente, no dia-a-dia da população ribeirinha e indígena aqui do alto Rio Negro (médio Rio Negro). As descrições desta postagem foram coletadas in locus, bem como presenciada por mim em algumas circunstâncias da minha atividade etnográfica.

Então, vamos lá. São elas (as lendas reais) que você provavelmente não conhece. Makiritari, Mirakanga, Mati, õka e Lubisome.


MAKIRITARI
Makiritari é um indivíduo ou grupos (indígenas ou não, não se sabe bem) que vivem na mata e são totalmente nômades. Segundo relatos de garimpeiros e caçadores da região, os makiritari se transformam em animais, principalmente em onças e viajam longas distâncias desta forma.  Enquanto onças, gostam de matar e devorar indígenas e agricultores durante o seus trabalhos em roças. O relato diz ainda que quando eles se transformam há uma inversão, o rosto da pessoas (mulher, homens e crianças) ficam na parte traseira da onça e o anus humano vira a boca da onça. Quando eles devoram as coisas vivas (pessoas e animais), uma espécie de cópia do espírito das vítimas fica presa em uma taquara, onde é possível ouvir os lamentos e os choros de dentro dela, o responsável pela taquara é um ancião do grupo.
Arte conceitual com base nos relatos coletados sobre Makiritari (autor: Mbo'esara Esãîã)



MIRAKANGA
Narram muitos caçadores e garimpeiros que se depararam com a estranha criatura vagueando pela mata e assustando a população. Estamos falando da Mirakanga uma espécie de cabeça zumbi, de mulher ou de homem, que vagueia pela mata atrás de carniças e animais mortos recentemente. A cabeça decrépita sai do corpo da pessoa (o mesmo relato ribeirinho também está presente em alguns grupos indígenas). Segundo a narrativa, a pessoa não sabe que é mirakanga, ao dormir, o pescoço afina e o sangue escuro que desce pela boca ao tocar no chão serve de guia para que a cabeça, agora já seca, saia rolando pela mata, retornando duas horas antes do nascer do dia. A pessoa mirakanga é enfeitiçada e quem a olha na rede a vê em sua plenitude. A palavra mirakanga tem sua origem na língua indígena ygatu na justaposição de mira ‘pessoas’ e kãga “cabeça”, dai a tradução de cabeça de gente.

Arte conceitual com base nos relatos coletados sobre Mirakanga (autor: Mbo'esara Esãîã)
MATI
Segundo relato de vários moradores de sítios e garimpeiros, Mati é uma criatura mítica, parecida com um homem, de corpo peludo, rosto deformado que assobia alto e cujo som se assemelha ao seu próprio nome  “maaaatiiiiiiiiiiiiiii”, é comum escutar o assobio característico no meio da mata soando longe. O assobio do Mati causa pânico porque está associado a mal presságio. Os Matis, que são pessoas (de outra região de rios amazônicos), podem ser sinônimo de pessoas que procuram fazer mau a quem quer que seja, e o assobio é uma forma de contato e uma vez correspondido o ataque é iminente. Nas descrições da população local o Mati utiliza-se da planta Tajá para se transforma em animais, esfregando as folhas em seus corpos. Os Mati utilizam pusãga para atacar as vítimas e assim fazerem o mau.


Arte conceitual com base nos relatos coletados sobre Mati (autor: Mbo'esara Esãîã)


ÕKA
Na cultura yanonami existe um ser, ainda não bem definido, que ataca o povo yanonami, principalmente crianças e idosos, as vezes alguns jovens. Eles descrevem õka como um yanonami hostil de terras longínquos. Seus corpos estão sempre pintados de preto, bem ornamentados com plumas de arara vermelha, algumas descrições ainda enfatizam os dentes pontiagudos e olhos sem córnea, a pupila preencheria todo o globo ocular e em todas as descrições as õkas estão de cabeças raspadas. Mas, o que deixa o povo yanonami aterrorizados não é a aparência, e sim, a forma de atacar e matar. Relatos contam que as crianças são empalhadas, ou tens os órgãos costurados com cipó, ou plantados de pernas para cima, como uma espécie de ritual macabra. Em 2011 quando estive no xapono de pohoroa, por ocasião de um reahu (festa yanonami) uma criança gritou desesperada do igarapé dizendo que tinha visto õka. O grupo logo se mobilizou com espingardas e flechas. Eu pude acompanhar in locus esse episódio. Próximo do igarapé, que serve de porto, atrás de uma folhagem alta de taioba tinha uma marca e rastros que ia em direção da mata. Os caçadores em grupo de sete seguiram o rastro, mas não pude acompanhar. Neste dia o xapono ficou em alerta e cinco duplas resguardavam, separados em pontos estratégicos, os arredores do xapono durante duas noites consecutivas.  Três dias depois fui com um grupo de yanonami ver o local de pernoite da Õka. Era um abrigo improvisado construído debaixo de uma árvores arriada pelo vento. A toca fora cavada com as próprias mãos, ainda era visível a marca dos dedos na terra ao fundo (na parede do buraco) bem como as folhas que servira de cama. Em todas as aldeias yanonami a aparição de õka causa transtorno e pânico.


Arte conceitual com base nos relatos coletados entre os yanonami sobre a Õka (autor: Mbo'esara Esãîã)


LUBISOME
Ao contrário do que nos remete esta palavra, aqui no Amazonas, no alto rio Negro, o lubisome não tem nenhuma relação com o lupus homo, com o homem-lobo (lobisomem). O lubisome trata de uma bola de luz que flutua em alta velocidade sobre os rios durante as madrugadas. Segundo os meus registros de campo, o lubisome ataca quem o foca (com lanterna) em sua direção. Também a descrição de que essa bola de luz cava cemitérios ribeirinhos atrás de ossos e os sugam através de um feixe de luz. Abaixo do médio rio Negro, alguns moradores dizem que no centro da luz há uma espécie de besouro grande (pela descrição, parece alienígena, pois a cabeça é desproporcional ao corpo e aos olhos, este ocupa quase todo o rosto), a luz muito forte possui intensidade variável, oscilando entre luz fraca e forte. Conta a maioria dos relatos que o lubisome não consegue entra na mata fechada e costuma levitar sobre as copas das árvores devido o seu corpo arredondado de luz. O fato é que o lubisome afeta a vida social dos moradores e causa pânico em pescadores.

Arte conceitual com base nos relatos coletados sobre Lubisome (autor: Mbo'esara Esãîã)

Uma rápida observação: é interessante notar que a palavra neste contexto é lubisome, se fizermos um pouco de elucubração (que é o que é mais provável da minha parte aqui,rsrsrs) perceberemos que a palavra LUBISOME poderia ser uma corruptela de LABIS LUMIES, labislumies para lubisumes e posteriormente para lubisome a tradução latina (não aquela clássica, mas uma próxima) seria "luzes do ponto" agora olha para a imagem descrita! coincidência, será? rsrsrsr. O nosso lubisome é uma bola de luz, parecendo uma estrela. claro que é apenas uma elucubração da minha parte ou uma coincidência linguística.


PALAVRAS FINAIS

Eis as cinco lendas (reais) que assolam os moradores atualmente do rio Negro e afluentes. Os relatos aqui descritos concordam em contextos e descrições em comunidade praticamente isoladas. A intuição desta postagem é divulgar e tornar conhecido uma realidade dos povos do alto rio Negro. Diferente do arcabouço lendário brasileiro os seres que relatei nestas postagens estão interagindo, modificando e firmando essas realidades, os Matis, por exemplo, são tão presentes quanto o sinal de celular na cidade. Do ponto de vista antropológico e filosófico, o mito e a lenda são duas classes categoricamente distintas, inclusive com perspectivas de inferência na realidade humana. Em síntese, o mito infere uma realidade humana descrita através de metáforas (ou não) que tenta abarcar uma realidade da dimensão humana, cujo conteúdo estruturante tem respaldo ético (conduta e ação) ou explicativa (narrativa pré-científica ou simpática), o mito sempre focará um conteúdo pragmático denotando um fenômeno sócio-cultural. O mito é narrativo, dinâmico e re-estruturante. Por outro lado, a lenda tem um caráter peremptório, ou seja, não se modifica, não possui uma inferência na vida social de um grupo especifico, tem uma dimensão simplesmente informativa e elucidatória, as vezes até educativo.

É isso, espero que tenham gostado das informações e divulguem entre os amigos.

Na próxima postagem vamos conhecer:
#Cinco Deuses Brasileiros que Ninguém Conhece; e ainda,
# Três coisas que você não sabia sobre o kurupira.

Até a próxima!

Comentários

  1. Que legal. Parabéns. #medo do Õka�������������� rsrs

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