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ESTUDOS LINGUISTICOS PRELIMINAR: O POROMONGETÁ DO TORÉM

Oi amigos do Xe mba’e!

Hoje trago mais um texto que estou desenvolvendo para um artigo a ser enviado para algumas revistas de antropologia (ainda estou pensando este caso), mas, o destinatário real é meu povo Tremembé, para nosso maior enriquecimento social e cultural. O texto não está na íntegra. No texto que se segue procuro fazer uma análise de dois dos diversos cantos que fazem parte do repertório do Torém, uma das maiores, mais rica e mais forte manifestação da cultura do meu povo Tremembé. Espero que esta postagem possa abrir e desperta outros a conhecer mais a realidade e a cultura dos Tremembé. Que também divulgue o poromonguetá que estou tentando reconstruir aos poucos. A abordagem tem caráter da linguística descritiva, e aqui, agradeço ao meu ex-orientador do mestrado e grande amigo Prof. Dr. Frantomé Pacheco (gastávamos horas incansavelmente falando sobre linguística e línguas indígenas) e ao meu amigo Prof. Dr. Mateus Coimbra que possui um conhecimento monstruoso de linguística e cuja companhia está sendo muito instrutivo para mim.  Com eles aprendi a gostar mais ainda da linguística. O texto original contém uma diversidade maior de cantos, mas aqui partilharei apenas dois, sendo a mesma linha de análise para todo o texto.


ESTUDOS LINGUISTICOS PRELIMINAR:
O POROMONGETÁ DO TORÉM

Por
Mbo’esara Esãîã Tremembé, Antropólogo e indígena.


O presente estudo pretende desenvolver estudos linguísticos primários sobre a língua dos Tremembé, o Poromongetá, a qual ainda não conta com descrição linguística, por diversos fatores, dos quais, o seu desconhecimento é uma dela. A metodologia empregada está fundamentada nos pressupostos da Linguística Descritiva. Basicamente, este estudo consiste em isolar os termos linguísticos específicos que emerge no Torém e estudar o processo histórico de corruptela (adição, subtração, síncope e fenômenos fonéticos) que os vocábulos sofreram ao longo da história. As letras do Torém foram coletadas pela FUNARTE, dos quais teve colaboração in locus do Prof. Aloysio de Alencar Pinto e do livro do Prof. Silva Novo: Os Tremembés de Almofala, como também de trabalhos escolares realizados por alunos Tremembé dos quais tive acesso. Os textos foram transcritos na íntegra. As informações coletadas (do texto FUNARTE) foram dadas pelo Cacique Vicente Viana (61 anos) Maria José Santos Sousa (filha de Francisca de Ouro da S. Cruz- Tremembé), Eleonor Marques do nascimento filha de Chiquinha da Lagoa Seca (índia chefe).

A análise aqui tem um caráter primário e não total, isto é, mostra as possibilidades de interpretação dentro de um contexto específico, mas não especificado (pois trata de uma espécie de poema como é característica de toda música). No torém as palavras “parecem” ser jogadas ao acaso (“sem nenhum sentido e muitas vezes inventados” por esses “índios”, como dizem irônica e infelizmente os populares da nossa região ou aqueles que acham que indígenas só tem na Amazônia).

Esse acaso cria uma dissintonia com o restante estrutural da música (mesclando português e poromongetá), salvaguardada pela melodia, mas é uma característica muito corrente, para quem não sabe, na cultura musical indígena de diversos povos. Entre os Yanomami do noroeste do Amazonas, por exemplo, tive a oportunidade de catalogar e transcrever vários amoapë (cantos yanomami) e a maior parte deles, como no torém, são frases sem nenhum “sentido” (como diria os mais céticos), como em um canto belíssimo que se diz tima tima kë, tima tima kë  aro kohiki poko kima tima tima corta-se, corta-se o galho da árvore aro repetindo várias vezes como numa espécie de mantra. (escutem um pequeno trecho que encontrei nos meus arquivos pessoais)



Esclarecido alguns dos pormenores seguiremos com os textos do Torém.

Análise do canto: Vaguretê

ORIGINAL
VOCABULOS RECORRENTES
TRANSCRIÇÃO
SIGNIFICADOS
Louvação (pedido de licença)
O senhô dono da casa
Licença, quero pedi (BIS)
Que nós queremos dirristi (divetir)
Nós queremos dirristi,
Nós queremos dirristi
E o vevê tem manibóia
Aninhá vaguretê
Aninhá vaguretê

Aninhá

aỹé
Certamente
Eis aqui
Vevê

Wewé
Voar
Manibóia

Maniywa
Mani mboia
Mani mboîu
Talo da mandioca
Mandioca+cobra
Dar de beber a + mandioca (aguar a maniva)
Vaguretê

Mba + gûirá-+eté
Mba+gureri+eté
wagûari+eté
Pássaro verdadeiro
Ostra de verdade
Tipo de garça

Na primeira coluna temos a letra coletada (e em negrito as palavras da língua antiga) na segunda uma possível transliteração destas palavras e na terceira coluna uma tradução não literal. Se fores como os conformes, as palavras sofreram alteração linguística influenciada pelo português regional com perdas de partículas, bem como de letras e vogais e acréscimo de outras. Apesar disso é possível identificar sua raiz.
O vocábulo vevê possivelmente vem de wewé. Wewé é o verbo voar como na frase gûirá owewé o pássaro voa.  Como é uma oclusiva bilabial a tendência é de transcrever e associar o wewé ao “v” da língua portuguesa. Aninhá deriva de aỹé que é um adverbio de modo eis aqui, e por fim, vaguretê é um vocábulo composto por va-gur-etê. O último termo da composição é claramente identificável isso é eté, cujo significado aponta para algo verdadeiro. –gur- pode ter sofrido corruptela das seguintes variações prováveis: guirá, gurere ou waguari significando respectivamente, pássaro, um tipo de ostra grande e uma espécie de garça (oposto ao Guiratinga=garça no geral).  O eté justaposto ao termo principal pode identificar um oposto (a falso pássaro, a ostra que não é ostra ou a garça no sentido geral) que é complementado pelo prefixo mba ou mba’e que indica a coisa em si (o ser) é uma ideia de cunho bastante metafisico.
Esclarecidos alguns vocábulos nestes termos podemos deduzir o seguinte:
ORIGINAL
TRANSCRIÇÃO TEXTUAL
TRADUÇÃO DA TRANSCRIÇÃO
Louvação (pedido de licença) 
O senhô dono da casa 
Licença, quero pedi (BIS) 
Que nós queremos dirristi (divetir)
 Nós queremos dirristi,
Nós queremos dirristi
E o vevê tem manibóia
Aninhá vaguretê
Aninhá vaguretê







wewé maniýwa
aỹé mbaegurereté
aỹé  mbaguiráeté    [variante 01]
aỹé waguarieté        [variante 02]






(tem) maniva a voar (ao vento)
Eis aqui a ostra verdadeira
Eis aqui o passarinho verdadeiro
Eis aqui a garça verdadeira













O trecho é bastante pertinente tendo em vista a região litorânea do Ceará onde nós (Tremembé) estamos presente, menção ao cultivo da mandioca (maniva), ao molusco comestível e não tão abundante hoje nas nossas praias, as andorinhas e as garças que enfeitam os nossos alagados. Não é de se estranhar que as palavras do torém retratem fielmente a nossa paisagem.


O próximo canto é o VERANIQUATIÁ

ORIGINAL
VOCABULOS RECORRENTES
TRANSCRIÇÃO
SIGNIFICADO
O veraniquatiá
E o verá tem bóirana
 Prêprêprê tem boinguê (BIS)
O veraniquatiá
E o verá tem bóirana
Prêprêprê tem boinguê
Sáia mussará o mangue
Prêprêprê tem boinguê (BIS)
O veraniquatiá
o-werawa+ni+kuatiara
Brilhava por causa da pintura
O verá
o-werawa
Brilhava
Boirana
Mboia-rana
Cobra falsa
Preprepre
Pereá
Peá
Animal
Deixar
Boinguê
Mboia-guê
Ó cobra
Saia
Xãi
Xai
Apenas
Torcida (coisa)
Mussará
Mosaraia
Mosaká
Mosaraia(ỹemossaraia)
Brincar
Ferir os olhos de
Fazer festa
Mangue
Mã+guê
Oxalá


O primeiro vocábulo analisado neste segundo canto é o veraniquatia. O que parece um artigo é, na verdade, a marca do sujeito “o-“ prefixo para a terceira pessoal como na frase paranãme osó : ele vai ao rio. Em seguida –verá- do verbo brilhar weraw no processo de aglutinação perdeu-se, como é decorrente no poromonguetá, a última silaba. Enquanto ni é a nasalização de ri, posposto ao verbo significa por cause de observamos na frase omanõ xe ri: ele morreu por causa de mim e cuatiá poderia derivar kuatiara significando pintura. No Tupi Antigo, como no tupinambá, por exemplo, isso não ocorria, mas nas línguas gerais, dos quais podemos citar o poromongetá e o Nheengatu amazônico (Língua Geral) é comum a redução de palavras como curumim=curu, mussarai=musará, apigawa=apigá, dai o termo mussará ser gravado em vez de musaraia. Esse processo pode ajuda-nos a visualizar a dinâmica da nossa língua tremembé.
O segundo termo boiarana que provavelmente deriva do composto mboia+rana. Mboia é cobra e o sufixo –rana remete ao que é falso. Por exemplo, cajá é a fruta enquanto cajarana seria uma cajá falsa, outro tipo de cajá sem ser a verdadeira.

Para prêprêprê podemos usar o processo sofrido por muitas palavras na nossa língua original, como não é corrente os encontros consonantais pre provavelmente deriva de peá (deixar). O mesmo ocorreu, por exemplo, com o nosso etinômio Tremembé que deriva de tïrïmembé, ou como na palavra preá cuja raiz originalmente se dizia pereá.
boinguê temos ai mboia que é cobra e guê que é o vocativo. Bastante utilizado como, por exemplo, xe ruw guê! Óh meu pai! Com o termo sáia teremos uma derivação de xãi que significa apenas. Ao longo da história da evolução das línguas gerais podemos observar alguns casos em que há mudança de x para o “s” como em xe sy (minha mãe/tupi de anchieta) para se manha (minha mãe/língua geral do alto rio negro) o possessivo xe passou para se.
E para encerra este segundo canto, temos ai manguê, que a primeira impressão nos apontaria para mangue, tipo de vegetação muito abundante nos litorais do Ceará, mas o artigo empregado nos remete a um vocativo, sendo assim, esta palavra derivaria, possivelmente, de mã+guê. Apenas (oxalá) como interjeição, seria o bastante para integrar a ideia completa, mas o guê que é vocativo vem enfatizar ainda mais a expressão.


ORIGINAL
TRANSCRIÇÃO TEXTUAL
TRADUÇÃO DA TRANSCRIÇÃO
O veraniquatiá
E o verá tem bóirana
 Prêprêprê tem boinguê (BIS)
O veraniquatiá
E o verá tem bóirana
Prêprêprê tem boinguê
Sáia mussará o mangue
Prêprêprê tem boinguê (BIS)
o-werá-ri kuatiara
o-werá   mboia-rana
peá, peá, peá  mboiaguê
o-wera-ri-kuatiara
o-werá   mboia-rana
peá, peá, peá  mboiaguê
xãi mosaraia mãguê
peá, peá, peá  mboiaguê
Brilhava por causa da pintura
Brilhava a falsa cobra
ó cobra, deixe-a! deixe-a!
Brilhava por causa da pintura
Brilhava a falsa cobra
ó cobra, deixe-a! deixe-a!
oxalá é apenas brincadeira
ó cobra, deixe-a! deixe-a!













E isso.
Em breve postarei o artigo na integra.

Comentários

  1. Kwá post puranga retana, semú!
    Vc sabe quão feliz estou por(embora eu não seja um Tremembé) ler essas postagem sobre seu povo, principalmente no que diz respeito a língua. Parabéns pelo trabalho!

    ResponderExcluir
  2. O “tem” talvez seja variante de “té”, “tẽ”, “tenhe” = mesmo, de fato

    ResponderExcluir
  3. Agustai aiku retã kuá blogue!
    Boingué pode ser mboî + ĩ + gué (=Ó cobrinha)

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Anaué tom, ere!!
      boingué pode ser mesmo "ó cobrinha"!!! é possivel.

      Excluir

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