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IDENTIDADE TREMEMBÉ

IDENTIDADE TREMEMBÉ


Um dia, estava voltando da UFAM e fiquei observando dois indígenas, que estavam sentando um pouco mais a minha frente no ônibus, falavam sobre o que era ser indígena, o que era ser um Tukano, um Uanano, um Sateré-mawé. Então, comecei a refletir um pouco sobre a minha identidade.

Refletiremos identidade através de um conceito mais amplo, identidade como re-memorização assumida, como um deslocamento do olhar da nossa constituição interna (que entre os muitos elementos está a questão cultural), enquanto Tremembé, para as fronteiras diferenciadoras e os mecanismos de manutenção, como uma necessidade de rever e explicitar parâmetros antropológicos sobre a “identificação étnica” como objeto de estudo ao invés de atividade técnica, burocrática ou científica, tal como comumente é empregado pela FUNAI diante das reivindicações de pessoas e grupos que se afirmam indígenas (como eu) ou descendentes de indígenas.

Faz pouco mais de cinco anos que assumi a minha identidade indígena, embora desde a mais tenra idade sabia dessa possibilidade de eu o ser. Meus pais são de Jericoacoara (de îerikûa Kûara = buraco de tartaruga) e Eu sou de Camocim (de kamusi = pote, urna funerária onde os Tremembé enterravam seus mortos, hoje em desuso), mas temos as raízes nativas localizadas nas regiões de Caraú, Itapipoca e Acaraú.
Para isso, vale uma notinha sobre meu povo para aqueles que não o conhece.

Os Tremembé foram citados em documentação histórica e em diversas obras do período colonial, tendo sido aldeados em certas missões, tanto no Maranhão como no Ceará, muitas vezes convivendo e fundindo-se a outras etnias também aldeadas pelos religiosos. Almofala foi o mais conhecido aldeamento dos Tremembé, tendo sido fechado na segunda metade do século XIX. Em 1857, suas terras foram doadas aos índios da antiga povoação, mas acabaram sendo invadidas gradativamente por latifundiários. Contudo, a população indígena continuou vivendo na mesma região, inclusive mantendo o ritual do torém. Chamados de caboclos ou descendentes de índios pelos regionais, os Tremembé passaram reivindicar o reconhecimento oficial de sua identidade étnica a partir da década de 1980. Em 2003, a Terra Indígena Tremembé Córrego do João Pereira foi a primeira a ser homologada no estado do Ceará. (texto ISA)

Antes de adentrarmos no aspecto da nossa identidade vale lembrar em que contexto emerge a nossa identidade. Para isso, menciono a autora Maria Sylvia Porto Alegre,

“Há um contexto que representa o "chão social" da vida do grupo, a partir do qual as formulações em torno de quem são e do lugar que ocupam são emitidas. Estas não estão circunscritas apenas ao âmbito local. A equação "dentro" versus "fora" que define a linha da diferença étnica incorpora contextos mais amplos, relativos à trajetória percorrida desde os primeiros contatos estabelecidos com a sociedade luso-brasileira até a contemporaneidade. Em suas práticas discursivas os Tremembé tendem a enfatizar as permanências e desprezar as rupturas, valorizam os ganhos e procuram minimizar as perdas, num movimento inverso ao que costumam fazer sobre eles a sociedade nacional, os historiadores e os antropólogos, dominados pelo "pessimismo sentimental" em relação às culturas tradicionais (Sahlins, 1997). Eles vêem-se a si mesmos enquanto participantes ativos dos eventos ocorridos, fazendo suas escolhas, tomando suas decisões. Há uma intencionalidade clara, presente na tradição oral, de assegurar a legitimidade de suas conquistas perante os brancos e de passá-la às gerações futuras, insistindo em continuar a ser índios, apesar dos prognósticos em contrário”. (Porto Alegre, 2000, p. 15)

Embora haja aldeias definidas do meu povo nos município de Itarema, Acaraú e Itapipoca, que são as mais conhecidas e citadas nas produções antropológicas das últimas três décadas, muitos Tremembé ainda estão espalhados pelo litoral do ceará, inclusive em Jericoacoara e Camocim, vivendo uma situação semelhante a da comunidade de Varjota:

Os membros da Comunidade da Varjota afirmavam que pertenciam à Terra do Aldeamento. Todavia, não organizavam o torém. Mantinham poucos sinais diacríticos ou símbolos de base étnica. Se os laços de parentesco, afinidade e compadrio eram difusos e impunham uma feição coesa aos seus membros, não tinham nenhuma forma de organização social e política centrada ao redor de um cacique. A coesão interna contrastava diante dos Tremembé de Almofala. Não passavam pela mesma gravidade de conflito interétnico. (Valle, 2005, p. 194)

Apesar de minha família não está em uma área que não faz parte do patrimônio territorial do aldeamento, temos a raiz fincada nos municípios de Acaraú e Itapipoca. Meu avós (ainda vivos, tanto paternos quanto maternos) e bisavós (2 bisavô e bisavó falecidos em Acaraú 2008 e um Bisavô em Jericoacoara falecido em 2007) são nativos desses municípios.

Apesar de sermos Tremembé, não estamos, nem temos ligações com as terras do aldeamento. Entretanto, possuímos sinais diacríticos de coesão cultural, isto é, um horizonte de idéias, representações e categorias que subscrevemos a nossa etnicidade. Minha mãe conhece a técnica da feitura do mocororó (feito de forma tradicional com quenga de coco, em vez de pote de barro), minha avó paterna é uma excelente rendeira, meu avó e minha mãe são “rezadores” (com os olhos atentos, retiram ‘quebranto’ de crianças descobrindo o causador da enfermidade através das gotas de óleo da mamona que se forma na superfície da água posta ali para esse fim). Além de todo um conhecimento a respeito do mar (de uma tradição antiga de linhagem de grandes pescadores que faz parte meu pai e meus avôs - na foto a cima é meu Avó Dão, montado em cima do maior predador do mar, o tubarão), cujo árduo trabalho de sobrevivência diante do oceano, nada temos de nos orgulhar, mas do conhecimento deste sim.

Quando escuto no seio da família que “puxamos” descendência indígena, pela parte da vovó (bisavó materna) e o termo “isso tem sangue de índio”, lembro-me do texto de Octaviano do Valle:

Havia o uso igualmente de metáforas botânicas que serviam na manutenção de um plano de continuidade/descontinuidade entre os "índios velhos" e os "novos". Os Tremembé costumavam empregar os termos "troncos velhos", "ramos/bróios/brotos" (novos), "cachos", "raiz", "dentro da "raiz/tronco". Todos estabeleciam visualização e imagens botânicas que, metaforicamente, contrastavam "velho" e "novo". Era o "puxar", tal qual o sangue, alguma coisa (a "parte") dos "troncos velhos" e da "raiz" para os "índios novos". (texto escrito para o ISA)

A isso soma-se a memória social da minha família, da “desconcertante” história da vovó ter sido capturada a dente de cães nas matas entre Acaraú e Jericoacoara;

Outro elemento muito importante da semântica da etnicidade Tremembé seria a memória social. Há rememoração do passado, de fatos acontecidos, de pessoas falecidas, de "histórias" contadas pelos pais e avós. Além disso, narrativas orais tradicionais podem ser emitidas combinando os testemunhos do passado vivenciado pelos Tremembé.

Dentre os diversos elementos semânticos, havia uma enorme discussão sobre as antigas "matas", sobre a distinção entre "índios brabos" e "mansos". Aludiam com freqüência à vulgata da "avó pegada a dente de cachorro", que tinha sido "amansada. (Valle: texto escrito para o ISA)

Tal e qual eu ouvira, muitas vezes, essa história no seio familiar.
Por isso, faço minha as palavras de Porto Alegre,

O apego à condição de "ser índio" funde e refunde a trajetória dos Tremembé no mundo dos brancos, num movimento continuo que os remete às origens do contato interétnico e daí para o mundo contemporâneo, onde se dá resolução dos problemas enfrentados. Assim se forjam e se projetam as expectativas quanto ao futuro, numa recorrência ininterrupta. As histórias do passado são atualizadas com elementos do presente toda vez que são recontadas e, inversamente, o presente é percebido e explicado como evocação do que ficou para trás. (Porto Alegre, 2005, p.15)

Os Tremembé que não são de “dentro” (terminologia própria da gente os de “dentro” e os de “fora”, em relação ao aldeamento), que estão espalhados por ai, pelo litoral do Ceará, ainda meio que escondido, possui conhecimentos escondidos que muito poderiam ser somado ao nosso patrimônio cultura imaterial e material como um todo, independentemente de onde nós, Tremembé, estejamos. Exemplo disso é a língua, onde segundos se afirma:

Apesar de falarem apenas o português, os Tremembé guardam resquícios da língua nativa e mantém uma notória diversidade no falar, figuras de linguagem próprias e diferenças no uso da fonética, em relação à população regional. Os cânticos do Torém contém muitas palavras do antigo idioma dos Tremembé misturadas a vocábulos de origem Tupi (Pompeu Sobrinho, 1951; Seraine, 1955; Pinto, 1975).(Porto Alegre, 2005, p. 14)

Segundo historiadores e lingüísticos, nós Tremembé, somos de um tronco lingüístico desconhecido, extinto ao longo dos últimos cinco séculos. Mas, passei anos dialogando com os mais velhos [1], observando a fala dos “vovozinhos”, até que um dia me falaram de uma língua tupi-guarani que falávamos, tratava então destes resquícios. Procurei então organizar vocábulos, tomei nota de frases na língua, percebi que era resquício da nossa língua, não da materna, mas de uma segunda língua aprendida e depois esquecida. Hoje estou tentando organizar essa nossa língua chamada de Poromonguetá [2] que um dia nós, do Povo Tremembé, falávamos.

Mas, afinal o que é ser um Tremembé? Ser um Tremembé é mais do que ser uma pessoa que se identifica como tal, é mais do que ter uma avó ou bisavó apanhado a dente de cães ou pega no mato (como contam os antigos sobre vovó), é ser do tronco velho, é ter sangue Tremembé, mesmo de uma longínqua genealogia. Ser Tremembé está para lá do estereótipo de índio, para além do fenótipo e da consangüinidade. Ser Tremembé não é ter “cara de índio”, muitas pessoas riem quando digo que sou Tremembé, que sou indígena, e principalmente que sou indígena do Ceará! Ser Tremembé é ultrapassar quaisquer considerações depreciativas pelos quais eu e me povo Tremembé passa fora de sua terra. Mas a isso se soma a propria dinâmica daquilo que chamamos identidade, cultural e social,

A cultura original de um grupo étnico, na diáspora ou em situações de intenso contato, não se perde ou se funde simplesmente, mas adquire uma nova função, essencial e que se acresce às outras, enquanto se torna cultura de contraste: este novo princípio que a subentende, a do contraste, determina vários processos (Cunha, 1978, p.99).

Por fim, caros amigos do Xe Mba’e, devemos entender por “identificação étnica” menos um trabalho técnico e racional de agentes especializados (antropólogos, dos quais também eu me incluo) que buscam materializar um vínculo concreto de pessoas e grupos contemporâneos com o passado pré-colombiano, e sim, entendê-la mais como uma manifestação sucessiva de múltiplas estabilizações contrastivas de grupos e de pessoas que vivenciaram e vivenciam situações de “misturas”, como nós Tremembé. Nesta perspectiva, quem “faz” ou “constrói” a identificação étnica não deveria ser o antropólogo ou o técnico indigenista, mas os próprios sujeitos sociais inseridos em situações sociais e históricas específicas.


Notas:
[1] As anotações sobre a nossa língua foram colhidas, nas minhas andanças pelo nordeste, de alguns idosos Tremembé, que infelizmente já faleceram, que solicitaram a preservação de suas identidades. Ressalto este dado porque, apesar dos avanços nas questões indígenas em todo o Brasil, no Ceará ainda se perpetua no imaginário dos próprios indígenas (naqueles que sabem que são e não assume a identidade indígena) a imagem do indígena como um “bicho-do-mato”, “bicho-brabo”, um “bicho-sem-educação”, ou preferem a anonimidade, por não estarem em território indígena, como por exemplo, Almofala ou córrego de são João.

[2] Introdução ao Poromonguetá: a língua dos Tremembé. É uma gramática que estou escrevendo, ainda há muitas lacunas e um tanto insipiente, estou trabalhando essas lacunas com base no tupi antigo já que era um dialeto deste. Apesar disso, há muitos aspectos interessantes nas anotações. Quando eu finalizá-la, destinarei primeiramente ao meu povo e depois abriremos para os brancos. Aspectos do Poromonguetá estará brevemente em outra postagem deste blog.

Referencias
Povo Tremembé: http://pib.socioambiental.org/pt/povo/tremembe/1062
ALEGRE, Maria Sylvia Porto. Evocações da terra tirada Memória social e consciência política na tradição oral do índios Tremembé. XXIV Encontro Anual da ANPOCS - GT Biografia e memória social. Universidade Federal do Ceará. 23 a 27 de outubro de 2000 / Petrópolis - Rio de Janeiro.

CUNHA, Manuela Carneiro da. “Etnicidade: da cultura residual, mas irredutível”. In: CUNHA, Manuela Carneiro da. Antropologia do Brasil: mito, história, etnicidade. São Paulo: Brasiliense, 1987.

VALLE, Carlos Guilherme Octaviano do. Compreendendo a dança do torém: Visões de folclore, ritual e tradição entre os Tremembé do Ceará. Revista ANTHROPOLÓGICAS, ano 9, volume 16(2): 187-228 (2005);

VALLE, Carlos Guilherme Octaviano do. 1992. "Os Tremembé, grupo étnico indígena do Ceará". Laudo antropológico solicitado pela Coordenadoria de Defesa dos Direitos e Interesses das Populações Indígenas/ Procuradoria Geral da República, Ministério Público da União.

__________. 1993a. Terra, tradição e etnicidade: os Tremembé do Ceará. Dissertação de mestrado. Rio de Janeiro: PPGAS/MN/UFRJ. 1993b. "Tremembé". In Atlas das Terras Indígenas do Nordeste, pp. 53-56. Rio de Janeiro: PETI/MN/UFRJ.

__________. 1999. "Experiência e semântica entre os Tremembé do Ceará". In OLIVEIRA FILHO, João Pacheco de (org.): A viagem da volta: etnicidade, política e reelaboração cultural no Nordeste indígena, pp. 279-337. Rio de Janeiro: Contra Capa/ LACED.

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