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JACQUES DERRIDA E A ANÁLISE ANTROPOLÓGICA

JACQUES DERRIDA E A ANÁLISE ANTROPOLÓGICA



No primeiro momento da minha pesquisa (no Programa de Pós-graduação em Antropologia Social pela Universidade Federal do Amazonas) intencionava trabalhar com as idéias de Jacques Derrida, mas o leque de autores da filosofia que poderia me dá bases para um estudo especificamente antropológico era exaustivamente grande, questionável, mas interessante.

Penso que apresentar um pouco o viés derridiano, por meio dos quais, conceitos como hospitalidade, desconstrução, herança, jogo da différance ou do trace abririam um espaço significante para a reflexão do mito yanomami como construção do ethos por meio das narrativas (tendo a alteridade como lócus da discussão) seria interessante para ilustrar que a escolha posterior de Habermas não fora casual.

Jacques Derrida trabalha com a escrita, mas isso não apresentaria um obstáculo, pois o povo Yanomami vem se apropriando da escrita como instrumento de manifestação cultural e política [1] cada vez. Desta forma poderíamos transpô-lo para o nível de análise já que os estudos dos mitos, apesar de ser coletados oralmente em áudio, são analisados através de textos.

Parafraseando Skliar (2005) poderia se dizer, com Jacques Derrida, que um mito yanomami não é, literalmente, um mito yanomami. O que o mito pretende – sabendo da impossibilidade dessa pretensão – é o de construir uma escrita com assinatura própria [2], uma escrita que participe, ainda sem querê-lo, ainda sem sabê-lo e sem fazê-lo de uma dimensão maior que ele mesmo, então diria Derrida, “vou ser lido? Escrevo para ser lido? E para ser lido aqui, agora, amanhã ou depois de amanhã? Esta pergunta é inevitável, mas se coloca como pergunta a partir do momento em que eu sei que não a posso controlar. A condição para que possa haver herança é que a coisa que se herda, aqui, o texto, o discurso, o sistema ou a doutrina [e no nosso caso o mito], já não depende de mim, como se eu estivesse morto ao final da minha frase [...] A questão da herança deve ser a pergunta que se lhe deixa ao outro: a questão é do Outro” (Derrida, apud Skliar, 2001, p.21).

A citação anterior ilustra como poderia ser analisado o mito yanomami através do prisma derridiano, como, por exemplo, a questão da herança citado a cima. Os Yanomami são herdeiros de uma herança mitológica, uma herança que se faz presente ali no meio deles, mas que, apesar disso, ela não é simplesmente acolhida pelo fato de ser uma herança, nem afirmada pelo fato de emanar dos anciões yanomami, autoridade no assunto, mas a herança ao ser depositada em cada um dos yanomami enquanto unidade ou coletividade deve ser reativada em formas diversas, em outra espécie, adotando como referência diferentes parâmetros, como esclarece Derrida ao dizer que “... o herdeiro sempre devia responder a uma espécie de dupla exortação, a uma atribuição contraditória: primeiro tem que saber e saber reafirmar o que vêm ‘antes de nós’, e que, portanto, recebemos inclusive antes de escolhê-lo, e nos comportar como sujeitos livres. Sim, é preciso [...] é preciso fazê-lo tudo para se apropriar de um passado que sabemos no fundo permanece inapropiável [...] Não apenas aceitar essa herança, mas relançá-la de outra maneira e mantê-la viva” (Derrida apud Skliar, 2001, p.23). De fato essa é uma das varias facetas do mito, ser inapropiável e permanecer herança.

Poderíamos ainda partir do princípio da desconstrução da qual nos possibilita um instrumento de análise com paradigmas diferentes de uma destruição pela destruição ou de uma destruição cética, em que a desconstrução “... é um compreender como alguma coisa está construída, o que requer reconstruí-lo. Desmancha-se uma edificação [...] para fazer com que apareçam as suas estruturas, as suas nervuras ou o seu arcabouço formal, mas, também para mostrar a precariedade ruinosa de uma estrutura formal que nada explicava, já que não era nem um centro, nem um princípio, nem uma força, nem sequer uma lei dos acontecimentos” (GABILONDO [3], 2001, p.171). Por isso, a desconstrução, como desconstrução e reconstrução do mito yanomami no âmbito da própria cultura escaparia daquilo que definiríamos como um simples instrumento de análise, pois, como diria Gabilondo sobre a desconstrução derridiana, “... um impulso que comina para outra interpretação da experiência, para outra experiência da alteridade que aquela que se rege por um pensar entronizado, governado pelo entendimento...” (GABILONDO, 2001, p.172), isto é, um esforço de desconstruir o mito pelo próprio yanomami no intuito de reconstruí-lo visando nesta reconstrução os parâmetros do contato “branco”.

Percebemos como os conceitos de Derrida abrem um espaço significante para reflexão sobre o que está para além do que narra o mito. Outro conceito interessante que oferece o pensamento de Derrida é de differance em que ele “remete ao que não se deixa apreender, à mobilidade do que está sempre diferindo, adiado, prorrogado, escandido a divisão entre presente e ausente. No jogo das diferenças nada está simplesmente presente...” (Sampaio, 2005, p.123). O mito, com sua mobilidade, seu caráter inapropiável e sua atemporalidade sempre presente, possui uma variedade de formas e dentro dessas formas as palavras causam impacto, como coloca Clark, “se alguém usa esta palavra e não aquela na presente situação deve haver alguma razão para isso” (CLARK apud TOMASELLO, 2003). Daí que Derrida diz que “nenhum elemento pode funcionar como signo sem remeter a outro elemento, o qual, ele próprio, não está simplesmente presente. Esse encadeamento faz com que cada ‘elemento’ [...] constitua-se a partir do rastro, que existe nele, dos outros elementos da cadeia ou do sistema”. (Derrida, 2001, p.32). É através de conceitos como differance e trace (rastro) que compreendemos o movimento dentro do mito, é no rastro existente ali na imagem de mobilidade, de movimento, de deslocamento, no jogo interminável a qual esse movimento remete é que emerge a significação, ou como diz Sampaio sobre a dinâmica “o que entendemos, em cada circunstância, [...] por diferença não pode, então, de forma alguma, ser algo circunscrito a uma dicotomia irredutível, a significados estáveis, pois estes estão indelevelmente imerso no jogo das diferenças, e é por meio deste jogo que adquirem sentido.” (Sampaio, 2005, p.123). Isso significar que o mito é o rastro (trace) daquilo que está para além da sua própria narrativa. É a aquilo que comenta Viveiros de Castro em seu artigo o Nativo Relativo tratando sobre uma questão levantada por uma estudante de antropologia sobre a idéia nativa contida na concepção de humano dos Ese Eja quando “...os mitos não dizem nada capaz de nos instruir sobre a ordem do mundo, a natureza do real, a origem do homem ou o seu destino" (1971:571). Em troca, prossegue o autor, os mitos nos ensinam muito sobre as sociedades de onde provêm, e, sobretudo, sobre certos modos fundamentais (e universais) de operação do espírito humano (Lévi-Strauss 1971:571). Opõe-se, assim, à vacuidade referencial do mito, sua plenitude diagnóstica: dizer que os pecaris são humanos não nos 'diz' nada sobre os pecaris, mas muito sobre os humanos que o dizem”. (Viveiros de Castro, 2002, p.13)

É uma pena não poder estender um pouco mais este texto, mas acredito que se salva a intenção de mostrar que autores, como Derrida, pouco compreendido e pouco conhecido no meio da antropologia, possa contribuir para enriquecimento das análises antropológicas. O dialogo antropológico-filosófico é nitidamente perceptível ao longo da própria historia da antropologia e ainda mais nos últimos anos como nos mostra Viveiros de Castros “a analítica existencial de Heidegger,a fenomenologia da corporalidade de Merleau-Ponty, a microfísica do poder de Foucault e o método da desconstrução de Derrida vieram se somar, nos anos 1980 e 1990, aos ventos continentais que já sopravam na década de 1970, responsáveis pela popularidade, na antropologia americana e britânica”.

Todavia, ainda enfrentamos (nós, dessa corrente de uma antropologia dialógica -não no sentido de Tedlook- mas, no sentido de interdisciplinaridade das áreas do conhecimento) como podemos perceber ainda pelas palavras de Viveiros Castro “A relevância para a antropologia da obra de Deleuze e Guattari é no mínimo tão grande quanto a de pensadores como Michel Foucault ou Jacques Derrida, cujos trabalhos já foram extensivamente absorvidos (ainda que freqüentemente mal entendidos)”.
Por fim, fica aqui a boa intenção de expandir essa nova (velha) perspectiva antropológica.


[1] A manifestação cultural através da escrita se da na produção em língua yanomami de cartilhas, livros, panfletos sobre saúde, etc. Enquanto que a manifestação política se dar na reivindicação dos direitos humanos como vem acontecendo com os yanomami de Roraima corporificado nas diversas cartas escritas pelos yanomami em sua língua, como, por exemplo, as cartas de Davi Kopenawa Yanomami, aos Órgãos Federais como FUNAI, Ministério da Justiça, Procuradoria Geral da Justiça e etc.
[2] Pelo que eu pude apreender cada informante deseja, crer e espera que sua versão do mito “X” seja a mais original e a mais autêntica.
[3] Gabilondo, Angel, La Vuelta Del Outro. Diferencia, identidad, alteridad. Madri: Editorial Trotta, 2001.

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