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Arte e Artisticidade na antropologia: um breve diálogo sobre o grafismo indigena na perspectiva de vidal e silva.


Este texto surgiu durante uma aula no mestrado em Antropologia com a Professora e Doutora Deise Lucy na disciplina Xamanismo e Arte em 2008.
Penso que o tema seja um bom ponto de partida para iniciarmos as postagens sobre antropologia no nosso blog.

palavras–chave: antropologia, arte, grafismo indígena.

A antropologia estética vem se desenvolvendo interessantemente ao longo destes últimos vinte anos com a sensibilidade que os novos antropólogos vêm demonstrando diante de uma vasta produção artística indígena como manifestações de sistemas de construções sociais e individual. Entre esses novos estudos antropológicos está o trabalho de Lux Vidal e Aracy Lopes da Silva da qual será foco do nosso dialogo neste texto. As autoras mostram em seu texto como a criação artística, e sua produção estética, produzem significados nas mais diversas culturas indígenas e tais significados possuem a capacidade de expressar a concepção de mundo e de si mesmo. Diremos que a arte, ou a arte do grafismo indígena mais precisamente, são meios de representação da vida social e aponta para a relação entre sociedade, natureza e o cosmo. Esta relação até então eram restrita apenas ao estudo da organização social (tendo o estudo do parentesco como norteador), da cosmologia, do ritual, do xamanismo, etc. Ou seja, a arte possuía uma dimensão periférica nos estudos antropológicos diante de aspectos tidos como mais importantes, como o já mencionado, estudo de parentesco.
De inicio poderíamos dizer que para estas autoras “a expressão estética são obtidos e compreendidos como elementos constitutivos de contextos socioculturais globais, o que permite que a arte seja captada tanto em seus próprios termos quantos em termos de significados simbólicos culturalmente elaborados, mecanismos cognitivos que, enquanto elemento de teorias cosmo-sociológicas nativas, dão ordem e sentido ao mundo.” (Vidal, 1992, 280). Para captar todos esses mecanismos as autoras propõem como vias analíticas três elementos que constituem aquilo que seria a feitura da arte, isto é, a habilidade técnica, as qualidades de forma e design de um modo geral e o conteúdo simbólico (Vidal, 1992, 280). Todavia, parece haver uma lacuna nesta compreensão, pois alguns autores, por considerar o conteúdo simbólico de difícil acesso, descartam-no. Para a análise da arte, ou do conceito de arte, parece óbvio que se necessita de antemão definir os termos que a define. Ao contrario de outras áreas de conhecimento, evita-se a utilização do conceito moderno de arte onde esta “está cognitivamente atrelado aos valores e conceitos correntes nesse universo”, (Vidal, 1992, 280). Pois elas mostram que essas mesmas categorias provavelmente não seriam encontradas em outras culturas, aliás, nem mesmo poderia, pois na ótica antropológica, os processos estariam ancorados na matriz da ação humana e não como pensa o mundo ocidental onde concebe esta inerentemente ao objeto. Por outro lado, as mesmas autoras não descartam as contribuições dadas por estas outras óticas, que não a antropológica, como a da psicologia, a da teoria da comunicação e mesmo da Estética, entre outras.
Para as autoras, na verdade para a antropologia, a experiência estética é aprendida e não apenas uma divergência emocional e cognitiva (prazer estético). Isto equivale afirmar que a arte indígena é contextualizada socialmente, daí aprendida, e não como na tradição ocidental onde esta permanece fora da esfera da vida social e cultural (falando de forma geral). Em outras palavras “o artista se comunica com sua comunidade que entende o que está sendo expresso” (Vidal, 1992, 281). Provavelmente é aqui que elas descartam o simbólico, pois “os símbolos possuem um mesmo leque de ambigüidade pra a platéia e para o artista” (Vidal, 1992, 281).
Notamos, portanto, que na Antropologia da Arte, ou da estética, é abordada mui diferentemente e que, por seu caráter qualitativo e social, a compreensão artística, ou melhor, do simbolismo da arte, precisamos compreender a sociedade onde esta é desenvolvida. As autoras ratificam esta dimensão citando Geertz “para o etnógrafo, as formas do saber são sempre inelutavelmente locais, inseparáveis de seus instrumentos e de seu meio” e Levis-Staruss “... é uma arte feita com certo objetivo, com uma certa função dentro da sociedade”.
A arte indígena, ou grafismo indígena de forma mais particular, possui um dimensão bastante peculiar no que toca a sua própria realidade ao que os autores denominam como “corporalidade” nas sociedades indígenas. Este elemento tornou-se central, pois “o corpo é uma matriz de símbolos e um objeto de pensamento. Na maioria das sociedades indigenas do Brasil, esta matriz ocupa posição organizadora central. A fabricação, decoração, transformação e destruição dos corpos são temas em torno dos quais giram as mitologias, a vida, cerimônias e organização social” (Vidal, 1992, 283). Em outras palavras, os autores nos remetem a arte indígena como sendo uma expressão cultural. Sendo assim, os significados culturais expressos pela arte gráfica indígena são, muitas vezes, conceitos abstratos que encontram expressão em representações figurativas. Nas palavras das próprias autoras seria o mesmo que dizer que a arte indígena “tornam visível o que é latente ou o que está coletivamente disperso e subjacente à experiência da vida cotidiana e da reflexão dos indivíduos.” (Vidal, 1992, 285). Se de um lado o texto deixa claro que a arte possui uma manifestação do social, os autores mostram também que ela possui, por outro lado, com outros povos, uma representação de entidades sobrenaturais e conceitos cosmológicos pensados de forma mais ampla. Nas palavras do próprio texto seria o seguinte “Preocupação de ordem filosófica ampla, relativas a própria definição da humanidade, seu lugar no cosmo e os modos corretos ou desejados de sua articulação aos outros domínios que compõem o universo são também objetos de representação por meio de imagens gráficas” (Vidal, 1992, 287).
Por fim, as autoras mostram que a generalização, falar de forma genérica, não sobre a arte, mas sobre os povos de onde vem estas artes é um grande equivoco. Não é possível falar, por exemplo, em “índios do Brasil”, pois cada povo tem um nome e uma produção específica e os artistas também possuem nomes e uma identidade pessoal definida. Sendo assim essa identidade tão arraigada a cada povo é possível falar então que essa mesma arte pode ser uma expressão de sua identidade, ou de reivindicar a mesma, abarcando toda uma dimensão política.
referência


Vidal, Lux B. & SILVA, Aracy. 1992. “Antropologia estética: enfoque teórico e contribuições metodológicas”. In VIDAL. Lux B. (org.) Grafismo indígena. São Paulo: Studio Nobel, Fapesp e Edusp. Pp. 279 – 293.

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