TRAÇOS CULTURAIS TREMEMBÉ: ÎANDÉ ÎASÏ AWÉ


Traços culturais Tremembé: îandé Îasï awé
(nós e a lua)

Podemos considerar este texto como um contínuo da postagem anterior (ver postagem anterior Identidade Tremembe) e neste compartilho com todos um pouco da nossa cultura. Gostaria de partilhar a nossa relação com îasï (lua). Quando olhamos para as coisas que nos cercam podemos olhar dentro de duas perspectivas: um olhar penetrante e um olhar marginal. Penso nesse olhar penetrante como uma categoria êmica do viver Tremembé, ou seja, do ver como a gente vê, do sentir como a gente sente. Esse olhar penetrante só é possível pelos óculos da cultura que cada um possui, que cada um foi gerado. Quando eu olho para îasï o que eu vejo não é mesma lua que você vê. Entretanto, esse olhar que você vê também o compreendo, porque também meu olhar é um olhar marginal. Provavelmente, ao olhar para a lua você vê a lua, um corpo astronômico, orbitando a terra num continuo espaço infinito. Eu também vejo isso. Isso é o que chamo de olhar marginal, carregado de uma “certa objetividade” e um pseudo ar cientificista.
fases da lua
Esse olhar eu aprendi na escola dos karaí etá (brancos). A lua com suas faces, com seus ciclos, com suas mãnhas (eclipse lunar, super lua, etc). Mas, a nossa relação com îasï vai muito mais além disso, é ela responsável pela orientação, leitura dos fluxos das marés, do crescimento das plantas, cultivo e de outras coisas mais. 
É certo que hoje em dia ninguém conta mais os anos pelas luas (o calendário é bem mais prático! preciso? Talvez...), na navegação, ela foi substituída primeiro pela bússola, depois pelo GPS. Mas mesmo assim, com toda a tecnologia hoje e com um olhar marginal cada vez mais arraigado na nossa vida, mesmo assim, îasï ainda é nossa referência. Eu sinto muita tristeza em saber que o conhecimento dos mais velhos estão cada vez mais minguado, pelo menos na minha região (que visito esporadicamente). Nenhum dos meus irmãos, e nem eu, aprendemos a ler o fluxo das marés pela lua. Até hoje acho incrível e, admito, não entendo como funciona. Lembro do meu avô gritando da cozinha, “menino, vê ai se a maré ta enchendo!” (eu sabia que ele estava me mandando olhar para a lua) e eu dizia “ta bom vô”, neste espaço de tempo, num pique de muleque corria desembestado para a praia (a casa do meus pais fica logo ai na praia) pra ver se ela tava enchendo e sem fôlego dizia “ta não vô!” e a resposta logo soava paralelo a um murmúrio “porque a demora? tu num ta vendo a lua ai não é?”.  É muito viva a lembrança do meu avô e do pai (eles estão firmes e fortes) saindo de casa, indo no quintal e olharem pra cima pra ver se a maré estava de enchente, de vazante, cheia ou seca.
Halo lunar
Outra leitura importante é o fenômeno que conhecemos como halo lunar (aquele circulo que se forma em torno da lua, você já viram?), pois bem, os mais velhos dizem que quando aparece é muito bom pra pescar peixe preto, como a cavala (Scomberomorus cavalla), por exemplo, (em contraposição ao peixe vermelho, com valor comercial, como o pargo (pagrus pagrus.sp).
Apesar de sermos um povo indígena ligado a atividade especificamente pesqueira, aprendemos a cultivar e a amar também a terra (frutos dos ensinamentos dos redutos indígenas, séc XVII, provavelmente).
Éramos nômades no litoral do noroeste do nordeste, numa faixa inapropriada ao cultivo da mandioca, como íamos cultivar a terra? Os mais velhos contam as aventuras das viagens que tinham de fazer do litoral a região serranas de Ibiapaba, Itapipoca e etc, levando peixe seco e salgado para trocar com farinha. Inda assim, aprendemos a associar îasï com a terra do plantio, a extrair madeira no período certo, ou seja, na lua minguante. Também lembro do meu avô, além de um ótimo pescador também se metia a coiffer. So cortava o nosso cabelo (meu e dos meus irmão e tios) na lua crescente, porque ele crescia mais rápido e mais bonito. Fazer a barba na lua cheia deixava-a mais volumoso (dai a briga dos meninos do ensino médio onde eu lecionava pra saber porque minha barba era tão cheia e crescia tão rápido), bem como maldizia meu avo reclamando da calvice pelo fato de ter cortado os cabelos na lua minguante, pois, nessa fase “o cabelo fica muito fraco e cai”, dizia meu avô.
Serra da ibiapaba (pra quem acha que o ceará é só seca...)

Por fim, elementos do conhecimento da cultura que não é só dos Tremembé, pois provavelmente você também conhece muito ou alguma coisa do que foi dito anteriormente.  E é claro que um olhar marginal dirá “as plantas se desenvolve dependendo do clima e do solo” e que “cabelo, tem haver com a quantidade de testosterona que produzimos”. E dai? Meu avô ainda assim continuará guiando-se pela îasï.
E para fechar, relatos quinhentistas, apontam que meu povo, talvez um dos únicos, produziam um machados lítico, (tradição perdida, eu acho) que tinha a forma de uma âncora, produzido com pedras e amolados na lua cheia, enquanto nos amolávamos os machados, as mulheres com as crianças dançam ao som do torém e se deleitavam ao sabor do mocororó. Esse machado de pedra era uma espécie de amoleto que usávamos antes de enfrentar os grupos adversos que vinha ocupar o nosso litoral, lutávamos pelas terras porque ela nos dava acesso ao mar, logo, “sem terra, sem mar”.

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