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ESTÉTICA E CORPORALIDADE ENTRE OS YANOMAMI

ESTÉTICA E CORPORALIDADE ENTRE OS YANOMAMI DO RIO MARAUIÁ

Sabem por que eu adoro antropologia? Porque não é apenas uma ciência, mas, simplesmente porque ela abre a cortina para um mundo totalmente diferente e nós, antropólogos, imbuído nestes mundos como peregrinos, nunca seremos totalmente o outro que está ali a nossa frente e, o pior, nunca voltaremos a sermos o que éramos antes da imersão. 
Lembro que tinha uma anseio tão grande em aprender a língua yanomami que nos primeiros meses de campo cheguei a sonhar, literalmente, em yanomami. Acreditava, e acredito criticamente, na utopia malinowkiana da imersão na cultura do outro e foi o que tentei fazer através da língua (também cantei, dancei e participei dos rituais mais profundos[1] que uma pessoa “estranha” poderia participar).
A cultura do povo Yanomami é singular, como são singulares as mais diversas culturas entre si. Porém, há tantos elementos sui generi que sempre que volto a convivência com os yanomami me espanto com elementos que encontro. Muito material que pude coletar não foram colocado na minha dissertação de mestrado pela Universidade Federal do Amazonas, material este que aborda estética, sexualidade, arte, filosofia indígena, música, entre outros. Andei comentando essas reflexões em postagens anteriores como no pré-artigo A revolução das espécies e a inversão antropológica (você pode acessar aqui link: http://xembae.blogspot.com.br/2014/01/evolucao-das-especies-e-inversao.html) onde mostro uma alternativa interessante do ponto de vista yanomami do surgimento das espécies a partir do homem.
Hoje, entretanto, vou tratar de outro aspecto da vida social e cultural do povo yanomami: o grafismo. Os grafismos indígenas são extremamente ricos de significados e simbolismos. É uma linguagem sui generis que propõe alternativas simbólica e estética para a esfera da vida, rompendo com o biologicamente herdado e desestruturando com a máxima “é bom pra comer” para “é bom para pensar”. O grafismo indígena coloca a vida humana um grau acima do necessariamente necessário. Como linguagem ele estrutura os mais diversos mundos, sendo um divisor de águas, de gênero e ao mesmo tempo unificador e transcendental. Os denominados motivos são finitos em si e infinitos quando combinados, acoplado a uma semântica do ser e do devir eles nos propões uma realidade difícil de apreender mais não impossível de penetrar.
Cada grupo étnico desenvolveu o grafismo de forma particular tendo como principal base de construção o próprio corpo. O papel[2], simbolicamente, representa o estar da escrita. Há quem diga que o grafismo é uma forma de escrita, puxando os grupos indígenas para fora da realidade das sociedades ágrafas (termo este que agrada ridiculamente muitos intelectuais). O grafismo é uma linguagem bastante complexa, pois é pensado com o corpo, e não no corpo. Essa complexidade se amplia quando o grafismo rompe a barreira do corpo, como a letra rompeu o uso do papel, e passa a habitar o ad extra corporis, ou seja, passa do corpo para as coisas. O conceito de corpo é muito importante para a compreensão do grafismo pois o corpo é, acima de tudo, uma agência. A ideia de que as coisas também possuem agência é uma realidade sociocultural que faz o grafismo deslizar do corpo para as coisas sem perda semântica, retendo assim toda a sua realidade ontológica. Por isso que o grafismo indígena supera a realidade da escrita como tal porque ele não é somente estético, ou figuração de formas, ele é politico e ritualístico, material e transcendental, visível e invisível, narração e consumação. Nossa dificuldade em entender essa realidade está fixada na nossa insistência dualista de pensar as categorias indígenas a partir da nossa perspectiva ocidental. A irredutível realidade entre a esfera humana e não-humana já foi superada a milênios nas sociedades indígenas.
A literatura antropológica e os registros etnográficos mostram uma variedade imensa de grafismos indígenas, uns mais aprofundados, outros apenas pincelados. A produção gráfica dos grupos Yanomami é pouco estudada. Há registros desses grafismos por parte dos missionários e religiosos que se empenharam em fazer um registro de cunho etnográfico, como é o caso do padre Luis Laudato [3], missionário salesiano. Ao contrário de muitos povos indígenas, os yanomami não ampliaram o grafismo corporal para os seus artesanatos. Não é comum encontrar grafismo na tecelagem ou nos trançados yanomami, não há cultura manufaturada com argila, como potes, urnas ou coisas parecidas, e mesmo quando há, é reduzida ao mais simples manufaturamento, como por exemplo, na hapoca (panela), não há traços de grafismo nem nas redes (nii) tecida de cipó ou algodão. Conseguimos encontrar alguns motivos de forma bem reduzida em algumas rahaka (ponta de flechas feita de madeira com uma espessura um pouco mais larga, para caçar animais de pequeno porte). Aparentemente, o pauximou (ato de se ornamentar) se restringe ao pëi kë të (corpo). O corpo é o lugar de estar do grafismo yanomami. É o plano onde se materializa as cosmovisão e emerge o senso estético. Dentro desse universo as formas se combinam e recombinam, criando permutações (irariwë) e operando transformações sociais. Podemos encontrar e catalogar diversas formas. Para não tornar o artigo deste blog prolixo vou elencar e ilustrar apenas alguns, mais recorrentes na cultura yanomami. 

São eles:
õni ëyëkewë

Ximorewë




Tipiki

Xaririwë



O grafismo yanomami combinam essas formas básicas para expressar uma ideia mais ampla e muito mais complexa. O grafismo tem um caráter integrador de elementos, o hekuramou (xamanismo yanomami), por exemplo, busca uma síntese da realidade humana não somente na performance corporal, como também na representação gráfica  incrementado no corpo, deixando um rastro[4] (um conceito bem Derridiano) para visualizar a passagem pelo eterno ou pelo suprahumano (nohitipi). o grafismo yanomami aponta para aquilo que não é possível se apropriar (os motivos, por exemplo, de ira, oro, iro, etc que são gravados no corpo). O que eu achei de mais interessante sobre o grafismo yanomami é que ele transborda o conceito de aqui e agora (do próprio corpo) e assume uma dimensão significante sem contudo, precisar ser norteado com um significado transcendental, metainterpretação ou hermenêutico.
Existem outras formas básicas de grafismo que combinados resultam em formas mais complexas que não mostrei aqui nesta postagens mas que poderemos mostrá-los em outras ocasiões.

Qualquer dúvida ou informação sobre grafismo yanomami podem interagir aqui comigo no nosso blog.

Ya korayoma!

Notas
1 – me refiro ao ritual osteofágico (consumo dos ossos pulverizados no mingau de banana) durante a Reahu de um velhinho yanomami falecido que conheci, e como conhecido fui convidado a participar dessa profunda experiência humana de existência e do devir.
2- o papel aqui é dado simbolicamente, antes do papel a escrita fora exercitada em mais diversos matérias, como pedras, argila, papiro, papel e, atualmente, na virtualidade da tela de um eletrônico (computadores e derivados), mas com toda a tecnologia o papel ainda detém a primazia.
3- O livro o caminhao do yanomami: pey keyo retrata um pouco da vida dos yanomami. o padre Laudato fez uma excelente coleta de motivos yanomami que estão, inclusive, desenhados no livro.
4 - o conceito de rastro de Jacques Derrida: DERRIDA, J. Gramatologia. Trad. Míriam Chnaiderman e Renato Janine Ribeiro. São
Paulo: Ed. Perspectiva, 2008.

Comentários

  1. sera que podiria falar todos os significados dos grafismos?

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    1. Anaûé "Unknown" !rsrsrs. Então, cada grafismo possui uma sentido literal e um semântico. vamos tomar como exemplo õni ëyëkëwë . Em seu significado literal temos "desenho (õni) de linhas sinuosas (ëyëkëwë)". Em sua dimensão semântica õni ëyëkëwë remete a concepção de cobra (oru (ki)) ou espirito wãikoyãriwë. pintar-se de õni ëyëkëwë remete a uma ancestralidade do espirito citado. Não sei se era isso, : ) ........... ah, e.. kûe katueté! obrigado por visitar nosso blog!

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  2. O que está associado ao xaririwë ?

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    1. Anauê, xe iru! Xaririwë tem vários significados. literalmente representa uma linha reta. Durante o Hekuramou, ritual de dança dos xamã, os hekurapë (espiritos) descem do hetu misi (outro plano) por um fio de aranha. esse fio de aranha é perfeitamente vertical (xaririwë) e representado no corpo por essa verticalidade mística.

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